Estou vendo I am Cait - passa no E!, mas dá pra baixar também - e tenho refletido bastante, claro que está atrelado a um processo de reflexão longo feito nos últimos anos. Sigo aprendendo a cada dia. A causa trans, especificamente, me ajudou a calar mais a boca diante de questões que não são minhas. Eu não tenho propriedade para dar pitaco na causa trans ou na causa negra, por exemplo, minha parte é escutar e dar apoio. Meu papel é aprender. Muito se fala no papel do homem na causa feminista e eu acho que é esse também: calar a boca e escutar.
Acompanhar o seriado sobre a vida da Caitlyn Jenner tem sido interessantíssimo em diversos aspectos. A relação dela com a família, com os amigos homens heteros, a relação com as filhas, sempre mais abertas ao diálogo do que os homens, é impressionante. E um dado momento a irmã fala sobre Caitlyn ter dito sobre a transexualidade 30 anos atrás, "achei que era uma fase, ela nunca mais mencionou". Porque fica para o grande público, a grande massa de julgadores, que um dia ela acordou e falou "taí, quero ser uma mulher". Um julgamento que reduz o ser humano e suas reflexões internas. O processo de transição, o processo de reconhecimento dessa transição é longo, muitas vezes a pessoa passa por períodos enormes de depressão até entender o que está acontecendo. Muito se fala do privilégio da Caitlyn ter dinheiro e suporte familiar, mas pode ter sido justamente a fama o principal empecilho na aceitação da transexualidade. O peso que se tem ao ser atleta, campeã olímpica recordista e tudo mais. A posição da mãe, apesar de cristã, é aberta para a possibilidade de compreensão. Não é uma aceitação direta, mas uma abertura para. A mãe diz "é difícil assimilar, mas irei assimilar", mais tarde diz "eu preciso aprender mais". E aí a gente tem uma questão crucial: o reconhecimento das próprias limitações. Olha como é difícil lidar com o mundo, mas me dá um tempinho aqui pra ler, me informar, que daqui a pouco eu estou pronta. É o primeiro passo. E o que vemos, na maioria dos casos, é uma total aversão ao desconhecido. Aversão que produz preconceito e consequentemente ódio.
É engraçado também acompanhar o início de uma mudança política. Caitlyn sempre foi republicana, conservadora. Uma das amigas fala sobre um grupo que luta por ajudas do governo e Cait diz "ah, mas não se pode dar tudo de mão beijada porque aí a pessoa não corre atrás". Daí Cait vai na reunião desse grupo e se depara com as histórias das pessoas "fui expulsa de casa", "era a melhor aluna do colégio e sequer tive chances de ir pra uma faculdade", "não conseguia emprego, para não passar fome me prostituí" etc. A cara de choque dela. A realidade completamente diferente. Pá na cara. Uma mudança total de perspectiva. No final do dia Cait tá chamando a assessora, aos prantos, e dizendo "nós vamos pagar a faculdade dela". É uma cena emocionante, mas também hilária.
Curto também as participações das ativistas no programa. Uma delas, a Kate Bornstein, falou sobre a questão do aliado. Um pensamento que é bem parecido com o meu:
"Tenho problemas com a palavra 'aliado'. Muitas pessoas pensam que, por nos aceitarem, são nossas aliadas, mas não são. São apenas receptivas. Ser aliado significa... você me pergunta do que eu preciso, eu respondo, e você me diz o quê ou o quanto pode fazer para me ajudar. Se eu disser que preciso de ajuda para atravessar aquela multidão, que me vê como aberração, preciso que você seja meu guarda-costas. Isso significa ser um aliado. E pergunte. Não presuma que sabe. Não presuma que o nosso maior problema seja banheiros de uso livre. Não é. E para algumas pessoas este é o maior problema. Pergunte. É o primeiro passo para ser um bom aliado".
Vale a pena acompanhar o seriado.