Vou confessar: eu morria de medo de visitar o Irã e fiquei tenso desde o momento em que percebi que a minha viagem estava finalmente saindo do plano dos sonhos para virar realidade.
Mas a minha tensão não tinha nenhuma relação com o medo que a maioria das pessoas tem quando pensa na terra dos aiatolás.
Ele não acreditou quando eu disse que a cena que eu via era linda
Depois de namorar o país por quase uma década, de ler tudo que eu consegui sobre ele e de conversar com uma pá de viajantes, eu não tinha o menor receio de ser sequestrado por um grupo fundamentalista, não tinha pesadelos com atentados, não tinha medo de ver minha mulher ser hostilizada nas ruas e não tinha o menor temor dos muçulmanos xiitas.
Meu medo era outro. Era de que o Irã não correspondesse às minhas expectativas.
Após passar todos estes anos lendo frases como “Quem encara vive uma experiência maravilhosa”, “Existe a vida antes e depois de conhecer o Irã”, “Os melhores anfitriões do mundo”, “O Irã redefine o conceito de hospitalidade”, “O Irã fascina e muda a perspectiva do visitante”, entre outras opiniões sempre positivas, eu esperava demais do país. Não encontrar o que eu imaginava seria absurdamente frustrante, talvez até motivo de sessões extras de terapia.
Esse medo começou a sumir logo nos meus primeiros minutos em solo persa.
Curdo aproveitando o seu narguile
Era mais ou menos 0h30 quando o avião onde eu estava aterrissou no aeroporto internacional Imam Khomeini, em Teerã. Apesar de toda a expectativa, naquele momento eu estava mais preocupado com a possibilidade de tudo já estar fechado e eu não conseguir trocar dólares por rial, a moeda iraniana.
Assim que enxerguei uma casa de câmbio aberta, ainda dentro da área de desembarque, corri até ela. Não me interessava conseguir uma taxa favorável, só queria sair do aeroporto com algum dinheiro local na mão. Mas quando cheguei no guichê e pedi para trocar 200 dólares, veio o inimaginável.
Ao invés de se aproveitar da situação e me enfiar um preço péssimo para cada dólar que eu tinha para vender – como é o esperado em qualquer lugar do mundo – o atendente me disse disfarçadamente:
“Não troque aqui. O valor é ruim. Troque na casa de câmbio no andar de cima. É melhor.”
Incrédulo, repeti a recomendação que ele havia feito, para ver se eu havia entendido corretamente: “Não devo trocar aqui, devo trocar em outra casa de câmbio?”
“É o melhor para você”, ele confirmou, sorrindo.
Eu havia levado o meu primeiro tabefe da simpatia, do respeito e da honestidade iraniana com os estrangeiros. Acabei não trocando nenhum dólar no aeroporto. Encontrei o motorista do meu transfer e fui rindo para o hotel.
Senhora simpática da ilha Qeshm, um dos poucos lugares onde se usam essas máscaras no Irã
O futuro do Irã
Homens visitando o túmulo do poeta Sadi, em Shiraz
Em uma matéria publicada em abril de 2005 na falecida revista Ícaro, o jornalista e fotógrafo Caio Vilela escreveu que “desde os tempos de Marco Polo, todos os viajantes ficavam emocionados com a hospitalidade e a simpatia” dos iranianos. Marco Polo viveu quase dois mil anos depois do homem que pode ter sido o grande criador da hospitalidade persa – ou ao menos servido de inspiração para as várias gerações depois dele.
Ciro, o maior de todos os governantes que o Irã já conheceu e o primeiro rei a unir as tribos da região, há 25 séculos, ficou famoso pelo respeito com que tratava os povos que conquistava. O maior registro disso está em um pequeno objeto de barro, o Cilindro de Ciro, onde o monarca diz que conquistou a Babilônia e libertou os seus habitantes, dando a eles o direito de venerarem seus próprios deuses, construírem seus templos e manterem suas culturas.
Hoje, muitos consideram o Cilindro de Ciro como a primeira declaração de direitos humanos da história, tanto que existe uma cópia dele na sede da ONU, em Nova York (o original está no British Museum, em Londres).
Comandando o maior império que o planeta já havia visto até o momento, a benevolência de Ciro com seus súditos poderia ter sido apenas uma estratégia para manter todo o povão heterogêneo sob o seu comando, mas não era só isso. Já naquela época havia um componente fortíssimo que influencia a hospitalidade iraniana até hoje: a religião.
Primeiro, foi a influência do zoroastrismo. Os governantes persas eram seguidores da religião do profeta Zoroastro, um sujeito que viveu algumas centenas de anos antes deles. Entre todos os ensinamentos do zoroastrismo, está a tolerância com as diferenças, cumprida à risca pelos nobres e pelo povo persa, além da ideia básica de que o ser humano precisa fazer o bem para as pessoas para merecer o paraíso depois da morte.
Depois do zoroastrismo, que perdeu seu lugar com a invasão árabe na Pérsia, veio a influência do islamismo, segundo o qual a hospitalidade é um ponto fundamental para quem deseja seguir o caminho de Deus. O Corão inclusive coloca os viajantes no mesmo patamar de pais e parentes, entre as pessoas que merecem ser tratadas com o bom e o melhor.
Adicione a isso o fato de que o islamismo praticado no Irã é o xiita e que ele foi criado a partir de uma interpretação local do islã, misturando conceitos e ideias que vieram do zoroastrismo, e você tem uma orientação religiosa que é uma verdadeira bomba de atenção e carinho com os visitantes.
Ponte Khaju, em Esfahan
Senhor Amini, que recebe turistas na sua casa, na ilha Qeshm
Vendedor de tapetes no bazar de Teerã
O atendente da casa de câmbio no aeroporto me marcou porque foi o primeiro, mas àquele momento se seguiram 27 dias me sentindo como se estivesse o tempo inteiro caminhando em um bairro onde eu havia passado a infância e conhecia praticamente todos andando nas ruas. Só que o bairro tinha 1 milhão e 600 mil quilômetros quadrados – um pouco mais do que o nosso estado do Amazonas.
Quando fui comprar meu chip de celular iraniano, por exemplo, ganhei o número do telefone do dono da loja, para ligar caso tivesse qualquer problema com o aparelho ou quando acabassem os créditos, porque ele poderia me vender mais barato do que nos quisques da operadora.
Nos momentos em que me perdi nas estradas do Curdistão, motoristas de ônibus e caminhões pararam para ajudar, ainda que não falassem um pingo de inglês.
Quando fui parado em um posto militar, ganhei beijos do oficial local e um pedido de desculpas pelo incômodo.
Em Shiraz, um motorista de táxi me comprou sorvete e fez questão de me levar ao aeroporto por caminhos alternativos, para que eu conhecesse outros lugares da cidade. No final, me cobrou 3 dólares e ainda me convidou para tomar um chá com amigos antes do meu voo partir. Quando voltei para o mesmo aeroporto, desembarcando perto da meia-noite, adivinha quem estava lá apenas para ver se tudo havia corrido bem? Ele mesmo, o taxista.
Abad, o taxista mais querido do Irã
Nos dois aeroportos por onde passei no interior, fui colocado à frente das outras pessoas nas filas de raio-x e ganhei sorrisos e apertos de mão dos militares que faziam a segurança e verificavam passaportes (homens com os mesmos uniformes, barbas cerradas e semblantes sérios daqueles mostrados no filme Argo).
Durante a Ashura, a cerimônia mais importante e fervorosa dos xiitas (considerada um momento de luto, na verdade), não apenas fui recebido com sorrisos dentro das mesquitas, como me levaram para os melhores pontos para fotografar as pessoas e ouvi os microfones agradecendo publicamente “a presença dos estrangeiros” no local. Fui até entrevistado por um canal de TV.
Turma posando durante a Ashura
Ainda durante a Ashura, minha esposa, que não podia ficar na mesma área dos homens, viu mulheres se levantando e insistindo para que ela se sentasse nos seus lugares, os melhores, pelos quais elas haviam chegado cedo para garantir vaga.
Tudo isso sem contar as inúmeras vezes em que eu estava pronto para ser explorado por taxistas e absolutamente não fui; as dezenas de “Hello!” e “Welcome to Iran!” que escutava diariamente nas ruas; as várias vezes em que fui parado por pessoas curiosas que queriam saber se estava tudo bem comigo no Irã; e os sei lá quantos cartões de visitas e números de telefones que ganhei e anotei, de pessoas que insistiam para que eu ligasse para elas caso precisasse de algo, mesmo se estivesse longe das suas cidades.
Vendedor de beterraba cozida, no bazar de Teerã
Senhores posando para uma foto digital, depois de ganharem uma foto instantânea (na mão de um deles)
O rabino Rajad, da sinagoga de Hamedan, onde está o túmulo de Esther. Ele coleciona canetas dos visitantes estrangeiros.
Hossein Fallahi, miniaturista iraniano, com exposições nas maiores e mais modernas cidades do mundo.
Você vê o sorriso? Eu vejo, pelos olhos.
Diferentes etnias, todas iranianas, todas lindas.
Deve ser impossível não receber um convite para se juntar a um piquenique
Simpatia mesmo durante o período de luto da Ashura. (Calma, isso não é sangue: é tinta)
Ele me pediu para fotografá-lo.
Senhora simpática da linda vila de Abyaneh
É óbvio que existem os iranianos que não são assim. É evidente que, num universo de 75 milhões de pessoas, existem zilhões de indiferentes, mal humorados e até grosseiros e estúpidos. Eu não comi de graça diariamente, não passei todos os dias como convidado em casas de estranhos gentis, não fui tratado como um rei o tempo inteiro, vi gente furando fila na minha frente e não vi sorrisos abertos em cada esquina. Não vou nem entrar em detalhes no fato de que os iranianos se transformam em boçais no trânsito.
No entanto, o saldo final, a impressão que eu trouxe comigo é clara: eu nunca havia me sentido tão acolhido e protegido em uma viagem.
Encontrei esse homem casualmente. Ele é o personagem que ilustra a hospitalidade iraniana no Lonely Planet
O Lonely Planet já havia me alertado sobre isso, é claro. Logo na primeiras páginas do guia do país, onde ele enumera 16 experiências marcantes por lá, a número 1 é “conhecer as pessoas”.
“As pessoas são simplesmente a melhor experiência do Irã”, diz o textinho explicativo.
As outras 15 experiências são divididas entre cidades, arquitetura, relíquias históricas, comida, encontros com povos locais, o contato extremamente próximo com o islamismo, as paisagens naturais, as compras nos bazares e a sensibilidade dos iranianos.
Todas são realmente maravilhosas e falarei sobre elas ao longo dos posts da viagem. Neste, fico apenas com a gigantesca hospitalidade iraniana, que merece este destaque e muito mais. A hospitalidade que me faz pensar na igualmente gigantesca sacanagem que o mundo inteiro faz com ela, tachando os iranianos de um monte de coisas ruins que eles absolutamente não são e não chegam nem perto de ser.
Algo que me faz lembrar permanentemente de outra frase que eu li antes de ir e a mais impactante de todas, dita pelo viajante Henrique Bente:
“O Irã é o país mais injustiçado do mundo.”
A minha experiência iraniana teria acontecido de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Mas eu tenho certeza de que ela não teria sido tão perfeita e inesquecível sem a ajuda de pessoas que fizeram a gentileza de doar tempo, atenção, estímulo, dicas e conhecimentos comigo, de forma pessoal ou não, ao longo do todos esses anos de namoro e também durante a viagem. Aos listados abaixo (em ordem alfabética), fica o meu moteshakeram, merci, kheili mamnoon.
Alessandro Lages Carlucci, Arnaldo Affonso, Beto Conte, Caio Vilela, Caroline Dutra, Claudio Battaglia, Egon Filter, Emília Fernandes, Guilherme Canever, Guilherme Belli, Henrique Bente, Jafar Kazerooni, Jocemar Tomasi (e família), Mohsen Hajisaeid, Nasrin Haddad Bataglia, Pegah Latifi, Rafael Leal, Samy Adghirni
*****
Leia também os outros posts sobre a viagem ao Irã
ANTES DA VIAGEM (estudos e preparativos):
- Se você pensa que iraniano é árabe
- Nem tudo é burca
- Feliz ano novo
- Muito prazer, Ferdowsi
- O paraíso é persa
- Arg-e Bam, um tesouro quase perdido
- O heroi americano do Irã
- Temperada com milênios de história (ATUALIZADO DEPOIS DA VIAGEM)
- Vou-me embora pro Irã
- O visto iraniano e uma historinha
- Todos os iranianos do Irã
- Os judeus do Irã
DEPOIS DA VIAGEM:
- Irã – Prologo
- O Irã numa casca de pistache
- Teerã: é amor?