Bater no Orvalho de Cavalo – e você sabe de quem eu estou falando ou, se não sabe, meu querido, tens minha estima, e até uma boa dose de inveja, continue assim – é uma tarefa fácil. O sujeito é de um simplismo intelectual risível, obscurantista até a medula em seus posicionamentos e tenta, de maneira canhestra, utilizar a filosofia como muleta para sua estupidez. É como borrifar verniz em uma pilha de bosta: vai brilhar, mas ainda é bosta.
Minha intenção não é tratar sobre este cidadão, mas sobre um dos ataques mais comuns feitos a ele, que considero igualmente desonesto por parte de quem o comete: a alegação de que o velhote não é e não pode ser um filósofo por não ter cursado faculdade de filosofia.
Antes de entrarmos nesta questão, é importante tirar da frente um argumento que surge em discussões dessa natureza: a alegação de que alguém que não cursou filosofia não é filósofo como alguém que não cursou engenharia não é engenheiro e alguém que não cursou medicina não é médico. Essa associação é absurda porque essas três áreas têm naturezas e finalidades tão distintas que a comparação entre elas, apenas por serem áreas de conhecimento ou cursos universitários, equivale a se comparar uma pedra e um cachorro apenas porque os dois são compostos de átomos ou porque os dois coexistem neste plano de realidade.
A filosofia é uma área cujo objetivo principal é o ensino do pensamento, suas limitações, armadilhas e potencialidades. É muito mais um exercício da capacidade intelectiva do que uma área de estudo com aplicação prática imediata. Não há e não pode haver um “tecnólogo em filosofia”. Além do mais, o uso da filosofia não incide diretamente sobre a vida e a segurança de outras pessoas. Não existem conselhos regionais de filosofia para validar seu pensamento, regras da ABNT sobre como pensar, normativas para analisar se seu fazer filosófico está ou não de acordo com as regras, órgãos para responsabilizar os filósofos pelo resultado de suas filosofagens. Qualquer movimento nesta direção seria imediatamente taxado como aquilo que é: coerção e censura. Com a medicina e a engenharia não é a mesma coisa porque, obviamente, um médico autodidata e um engenheiro por hobby têm potenciais destrutivos imediatos que um filósofo não tem.
Portanto, Orvalho de Cavalo não pode ser classificado como filósofo não por não ter concluído um curso acadêmico de filosofia, mas por ser incapaz de se questionar e demonstrar ser desprovido de senso crítico. Isto é tanto verdade que um seu “par”, na filosofia, na estupidez e na falta de honestidade intelectual tem graduação, mestrado e doutorado na área e mesmo assim é ofensivo a qualquer um que procura pensar com o mínimo de coerência que tal cidadão seja classificado como filósofo: Luiz Felipe Pondé.
Está lá, em seu currículo na Capes:
“Possui graduação em Filosofia Pura pela Universidade de São Paulo (1990), mestrado em História da Filosofia Contemporânea pela Universidade de São Paulo (1993), DEA em Filosofia Contemporânea – Universite de Paris VIII (1995), doutorado em Filosofia Moderna pela Universidade de São Paulo (1997) e pós-doutorado (2000) em Epistemologia pela University of Tel Aviv.”
Pondé pode até saber – como Orvalho de Cavalo também sabe – mencionar obras de filosofia, filósofos, linhas de pensamento já estabelecidas e suas diferenciações, os traços marcantes das obras de Nietzsche, Sartre, Foucault, Heidegger, etc., etc., etc. Esse conhecimento, por enciclopédico que seja, não os habilita como filósofos. Quando muito como literatos – o que não é e não deveria ser considerado, a priori, como qualidade, e posso entrar nesse mérito depois. Ter o conhecimento sem saber como aplicá-lo é tão útil quanto ter uma máquina e não fazer a menor ideia de como operá-la, portanto ter conhecimento sobre a história da filosofia sem aliar a isso o pensamento crítico necessário para processar essas informações – e elaborar novos pensamentos à medida que a vida avança e os acontecimentos, sociais e particulares, se desenrolam – pode não ser de todo inútil, mas não é o suficiente para que essas pessoas sejam chamadas de “filósofos”.
Eu poderia elencar aqui diversos momentos em que Pondé se mostrou um boçal cujo discurso seria fácil de desmontar para qualquer aluno do primeiro semestre de filosofia com o mínimo de capacidade cognitiva, mas focarei em um, que tive o desprazer de assistir em um vídeo no LinkedIn, no qual o suposto filósofo questiona a necessidade da CLT, argumentando que brasileiros tentam migrar legal e ilegalmente para os EUA, país no qual não existe proteção trabalhista, mas americanos não tentam migrar para o Brasil de modo a serem protegidos pela CLT em suas relações de trabalho.
O nobre “pensador” parece considerar que os dois países são equivalentes, que suas economias são comparáveis, que suas estruturas sociais são semelhantes. O Doutor Filósofo não considera o fato de que a população brasileira (não apenas, claro, mas também) é bombardeada com a produção cultural norte-americana, que as estruturas de comunicação globais planificam a identidade cultural dos jovens conforme as tendências ditadas pelas economias dominantes, ensinando os valores, o modo de vida, os princípios dos americanos, em um fenômeno claro de colonização cultural, mas que o mesmo não acontece no sentido contrário. Os americanos sabem pouco ou nada sobre o Brasil. Não somos estudados lá, nossos filmes, nossas séries, nossas músicas não tocam por lá. Não aprendem a dançar o funk ou a curtir o sertanejo – o mesmo funk e o mesmo sertanejo que fazem não pouco uso de referências da música pop e country americanas –, não tomam caipirinha e não comem feijoada (nós tomamos Jack Daniels e comemos hambúrguer), não leem Graciliano Ramos e Ruben Fonseca, isso para ficar apenas na ponta do iceberg. Nós vivemos afogados na cultura deles, porque nosso dinheiro é interessante, mas eles não chegam a molhar o dedinho do pé na nossa cultura. Quiçá sabem do futebol e do carnaval, e olhe lá.
Então é desonesto perguntar por que os americanos não querem vir para cá, onde há leis trabalhistas, mas os brasileiros querem ir para lá, onde não há a mesma proteção. Os brasileiros que desejam ir para os Estados Unidos não estão nem aí para a proteção trabalhista ou não. Os objetivos são outros: são a massificação do consumo (conforme apregoado pela mídia americana), a suposta melhoria na qualidade de vida, a possibilidade de usar roupas e adquirir itens de marca, coisas que por aqui são sobretaxadas e proibitivas. Mas os brasileiros não são informados pela mídia nacional a respeito do inexistente sistema público de saúde americano, ou sobre os custos para se estudar numa universidade, ou sobre o crescente número de moradores de rua nas maiores cidades americanas. Sabemos inclusive muito pouco do mercado imobiliário gringo, ainda em colapso após a crise imobiliária de 2008.
Informações sobre a realidade da vida nos Estados Unidos não chegam até aqui, apenas a glamourização do consumo e do empreendedorismo. Perguntar “por que os brasileiros querem ir para os Estados Unidos mas os americanos não querem vir para o Brasil?”, nesse contexto, é tão desonesto quanto perguntar “Por que as pessoas tentam fugir de Cuba para os Estados Unidos, mas os americanos não tentam fugir para Cuba?”. Perceba: não significa que essas perguntas não podem ou não devem ser feitas. Mas, da forma como são apresentadas, são tentativas pobres de desarmar os críticos do sistema capitalista e do imperialismo econômico. São manifestações de ignorância de quem as emite.
É por causa desse tipo de incapacidade de reflexão que Orvalho de Cavalo não é um filósofo. É por causa desse grau de estupidez que Luiz Felipe Pondé não é um filósofo. Não tem nada a ver com academia, com estudo universitário, com nada disso: tem a ver com cognição, com o mínimo de honestidade intelectual.
É natural e justo que qualquer pessoa que pense um pouco sobre as coisas queira desmascarar esses boçais. Essa sanha combativa não justifica que se lance mão desse ad verecundiam. Escolaridade é importante, lógico, mas passa longe de ser sinônimo de qualificação ou direito a este ou àquele título. A ignorância e a burrice subsistem em todos os meios. Inclusive no acadêmico.
É fundamental ter isso bem claro e precaver-se contra isso.