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21 Jan 11:47

not-so-secret-nerd: rowanwould: The best explanation I’ve heard so far for why R2 only woke up at...

not-so-secret-nerd:

rowanwould:

The best explanation I’ve heard so far for why R2 only woke up at the end, is that he actually does start booting up when BB8 first finds him; he just has to get through 10 years worth of updates before that.

I can literally accept that

18 Jan 19:02

Abraçando árvore

Não era uma felicidade eufórica, dessas de gritar "Urrú!", estava mais pra uma brisa de contentamento, como se eu bebesse vinho branco à beira-mar ou lesse Rubem Braga na varanda de um sítio.

Eu tinha acordado cedo naquela sexta -e acordar cedo sempre me predispõe à felicidade. O trabalho havia rendido bem e, antes do fim da manhã, já tinha acabado de escrever tudo o que me propusera para o dia. À uma, fui almoçar com o meu editor. Ele estava com alguns capítulos do meu livro novo desde dezembro e eu temia que não tivesse gostado. Gostou. Fez alguns reparos com que concordei. Comemos um peixe na brasa -peixe e brasa também costumam me predispor à felicidade- e como era sexta-feira, e como somos amigos, e como comemorávamos essa pequena alegria que é um trabalho andar bem, uma parceria funcionar, brindamos com vinho branco -não à beira-mar, mas à beira do Cemitério da Consolação, que pode não ter a grandeza de um Atlântico, mas também tem lá os seus pacíficos encantos.

Saí andando meio emocionado, meio sem rumo pela tarde ensolarada e quando vi estava em frente à paineira da Biblioteca Mario de Andrade. É uma árvore gigante, que provavelmente já estava ali antes do Mario de Andrade nascer, continuou ali depois de ele morrer e continuará ali depois que todos os 18 milhões de habitantes que hoje perambulam pela cidade de São Paulo estiverem abaixo de suas raízes. Talvez tenha sido o assombro com essa longevidade, talvez acordar cedo, talvez os elogios ao livro e o vinho certamente colaborou: fato é que senti uma súbita vontade de abraçar aquela árvore.

Acho importante deixar claro, inclemente leitor, que não sou do tipo que abraça árvore. Na verdade, sou do tipo que faz piada com quem abraça árvore. Se me contassem, até a última sexta, que algum amigo meu foi visto abraçando uma paineira na rua da Consolação eu diria, sem pestanejar: enlouqueceu. Mas...

Não haveria nada de místico no abraço. Eu não achava que a paineira iria me emprestar qualquer "energia", nem que ela sugaria de minh'alma possíveis toxinas metafísicas. Era algo simbólico como atirar uma rosa ao mar dia 31 de dezembro, uma mínima inflexão na correria: aí está você, imóvel e longeva, aqui estou eu, ágil e breve, duas soluções do acaso para a soma de elementos da tabela periódica -e ela seguiria ali, com sua fotossíntese, eu seguiria adiante, com minhas caraminholas.

Olhei prum lado. Olhei pro outro. Tomei coragem e foi só sentir o rosto tocar o tronco para ouvir: "Antonio?!". Era meu editor. Foram dois segundos de desespero durante os quais contemplei o destrato do livro, a infâmia pública, o alcoolismo e a mendicância, mas só dois segundos, pois meu inconsciente, consciente do perigo, me lançou a ideia salvadora. "Uma braçada", disse eu, girando pra esquerda e envolvendo a árvore novamente, "duas braçadas e... Três". Então encarei, seguro, meu possível verdugo: "Três braçadas dá o que? Uns cinco metros de perímetro? Tava medindo pra descrever, no livro. Tem uma parte mais no fim em que essa paineira é importante."

Colou. Nos despedimos. Ele foi embora prum lado, a minha felicidade pro outro e agora estou aqui, já noite alta desta sexta-feira, tentando enfiar a todo custo um tronco de quase dois metros de diâmetro num livro em que, até então, não havia nem uma samambaia.

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07 Jan 16:11

‘O Brasil é de costas para a América Latina’

by Ana Magalhães

Num final de tarde ensolarado, o maior intérprete vivo da música popular brasileira abriu as portas de sua casa no Leblon, no Rio de Janeiro, para receber a equipe da Calle2. Das amplas janelas de sua cobertura é possível contemplar o Cristo Redentor e observar uma grande extensão das águas daquele mar azul tão cantado em prosa e verso, que continua a encantar.

De calças jeans, camiseta branca e um tipo de alpargatas azul claro de pano estampadas com diminutas listras de cores diversas, Ney Matogrosso apareceu na ampla sala, olhou o trio à sua frente e logo perguntou ao fotógrafo Zarella Neto se ele havia trazido iluminação. Mestre da luz, responsável por iluminar shows de vários astros como Chico Buarque, Ney, claro, se preocupa com ela. “Nessa época do ano escurece muito cedo no Rio”. Ao ver o primeiro fotograma, se tranquiliza. Ficou intrigado com o tom esverdeado, mas logo começou a discorrer sobre o melhor lugar para se dar um mergulho na orla carioca.

“O Arpoador tem as águas mais limpas para o banho”, diz para o cantor RaphaZ, vocalista da banda Zabomba, que fez a ponte para a entrevista e com quem realizou um dueto em um show memorável em São Paulo. Ney, aliás, costuma apoiar novos grupos com os quais se identifica e incentivar novos talentos.

Sua figura magérrima, num primeiro momento, pode fazer com que se acredite ser ele um homem frágil. Nem de longe. Quando fala, mostra com a força de suas palavras o porquê despontou para a arte como um mestre da subversão e fez da transgressão sua maior arma para enfrentar o conservadorismo. “A América Latina é machista”, sintetiza o cantor, neto de avô argentino e avó paraguaia.

Verdadeiro meteoro da MPB, Ney surgiu no cenário musical com os Secos & Molhados, arrebatando uma legião de fãs com sua postura comportamental, que o seguem até hoje e lotam seus shows onde quer que se apresente. Em 1975, já fora dos Secos & Molhados, Ney lançou “Água do Céu-Pássaro”, seu primeiro disco solo. E cantou no feminino “Barco Negro” um fado eternizado pela cantora portuguesa Amália Rodrigues, que ouvia suas vizinhas portuguesas cantarem no subúrbio do Rio, onde foi criado. O disco foi mal recebido pela crítica à época, mas é uma obra-prima do artista.

Quarenta anos depois, foi a partir do disco que a Calle2 iniciou a entrevista com Ney, hoje com 74 anos, que se prepara para cantar Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos em um espetáculo com previsão de estreia para setembro deste ano, com direção da cineasta Ana Carolina Soares.

O que foi para você gravar “Água do Céu-Pássaro” após sair dos Secos & Molhados e cantar no feminino “Barco Negro”, um fado eternizado por Amália Rodrigues? Como foi isso?

Foi tudo o que eu queria fazer num disco de música. Cantar só o que me interessava além do repertório dos Secos & Molhados. A primeira vez que ouvi essa música foi aos 13 anos, quando vi um filme francês chamado “Amantes do Tejo”. A Amália Rodrigues aparecia cantando e aquela música era uma viagem. Quando fui fazer o meu primeiro disco, um amigo de Mato Grosso veio um dia na minha casa com um álbum dela e perguntou se eu conhecia. Quando ouvi o “Barco Negro” eu disse: “Meu Deus do Céu, chegou na hora certa” (risos). Porque aquela música nunca saiu da minha cabeça. Fui criado num subúrbio do Rio e tinha umas vizinhas portuguesas que cantavam aquela música e eu ficava ouvindo.

Você nasceu na fronteira com o Paraguai [em Bela Vista-MS]. Qual a influência dessa fronteira na sua vida e na sua música?

Minha avó era paraguaia e meu avô era argentino. Cresci ouvindo falar guarani e castelhano. Para mim, quando cheguei à música, eu queria oferecer também essa perspectiva de uma fronteira. Quando surgi no cenário artístico, o Centro-Oeste do Brasil era desconhecido completamente, era misterioso, era floresta, não era soja. Era um cerrado alto que ia virando floresta. E eu queria trazer isso. O cantar em espanhol fazia parte do meu ser. Porque lá todo mundo cantava, tocava violão nas festas, nas casas e dançava canções em guarani e em castelhano. Isso tudo me influenciou e faz parte da minha memória, da minha infância e adolescência.

O que você conhece hoje de música latino-americana?

Não sei muito. Nós perdemos o contato. Quando eu era criança e vim morar no Rio de Janeiro se ouvia nas estações de rádio músicas do mundo inteiro. Música francesa, portuguesa, espanhola, argentina. Se ouvia de tudo. Agora nós perdemos o contato. A gente não sabe de nada do que acontece ao nosso redor. O Brasil é de costas para a América Latina e anseia pela América do Norte. Eu acho isso uma chatice, uma mentalidade  muito chata, muito deturpada.

foto por: Zarella Neto
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Em qual trabalho seu você vê uma influência musical latina?

Talvez no disco “Seu Tipo”, quando usei um grupo de bolivianos com flautas. Mas fiz algumas participações com artistas da Argentina, canto músicas do Jorge Drexler [cantor uruguaio que ganhou um Oscar por melhor canção original]. Mas, por exemplo, eu não conheço o Chile. Vou agora em maio. Vou voltar de novo para o Uruguai e Argentina e encerrar a turnê do show “Atento aos Sinais”. Tem uma música de Pablo Neruda muito linda que a Mercedes Sosa canta que eu vou cantar um dia, chamada “Poema 15”.

No show “Atento aos Sinais”, o público sai do teatro querendo mais. E você não para um minuto. Qual o segredo da tua eterna juventude em cima do palco?

Acho que é a minha cabeça. Todos os repertórios que canto sou  eu que faço. Não tem ninguém que me diga ou dirija. Sou eu que invento. Quando eu vi essas músicas todas juntas eu percebi o tamanho da confusão que tinha me metido (risos). Porque era uma estiva, bem puxado. Aí disse para mim na frente do espelho: ‘Inventou, faz!’. Não tem essa. Entro no palco e dou conta. Claro que saio cansado, mas sempre saí cansado. No tempo dos Secos & Molhados, tinha que entrar numa banheira de água quente após me apresentar. E nesse show viajo com 26 pessoas, para ter tudo em cima funcionando. Ganho menos, não tem importância, mas tudo funciona.

Você pensa em fazer um tributo a um artista como fez com Chico Buarque, por exemplo?

Penso sim na possibilidade, mas não consigo me decidir. Quando começo a ouvir o Caetano Veloso eu tenho vontade de fazer porque o Caetano foi o único artista que eu prestei atenção num determinado momento da minha vida. Quando eu prestei atenção nele na Tropicália eu pensei assim: “Se eu fosse artista queria ser alguma coisa assim”. Eu não queria ser ele, mas eu queria provocar nas pessoas o que ele tinha provocado em mim porque a primeira vez que eu vi o Caetano fora daquela coisa toda da televisão foi em Brasília no auge da ditadura militar. Eu fui à única sorveteria que tinha na cidade e quando estou entrando vejo ele saindo do único hotel que existia na cidade vestido inteiro de cor de rosa do pescoço até o pé. Essa cor um homem jamais poria. Aquilo foi uma perturbação na minha cabeça porque era uma transgressão absoluta. Homem não usava aquela cor nem dentro do tênis, nem escondido na cueca. E eu entendia que a perseguição ao Caetano não era política, mas comportamental. O Caetano acendeu uma coisa dentro de mim. E quando vi o Caetano eu era um funcionário público, cantava num coral só para encontrar os amigos e ter alguma coisa para me divertir porque não tinha o que fazer em Brasília. E quando fui chamado para os Secos & Molhados eu não sabia o que ia fazer. Havia uma proposta de a gente vir com boinas de Che Guevara e eu disse que não ia por e iria fazer o que eu quisesse. Eu queria me liberar porque a gente vivia num país onde não se podia ter uma opinião, sair do rebanho.

 Olhando para trás e olhando hoje como você vê no Brasil a questão dos gêneros?

O Brasil encaretou, houve uma regressão. Na América Latina não tenho noção porque a América Latina é realmente muito machista de maneira geral. Deve haver alguns lugares mais liberados, mas aqui no Brasil vejo um retrocesso. Ao mesmo tempo  em que tudo aparece, os direitos são exigidos, e tudo isso está exposto, os evangélicos estão dentro do Congresso brasileiro. E aí?

Existem épocas de transgressão e de regressão. Nós estamos num momento de regressão, mas daremos outros passos em direção à liberação. Acredito muito nisso e a gente tem que ser paciente porque queremos tudo para hoje, as transformações e mudanças todas para agora. Mas não são assim que elas funcionam. Elas têm um prazo. É como o mar. Vem e vai.

Estamos entrando na Era de Aquarius, que promoverá toda essa liberação. Toda essa sordidez que a gente está vivendo no mundo faz parte do processo para Aquarius se instalar e colocar para fora toda a imundície humana. Tudo vai ser visível para depois acontecer outra coisa. A gente viu policiais batendo em crianças em São Paulo durante a ocupação das escolas. Quem poderia pensar que isso iria acontecer? É um absurdo, mas isso também gera uma reação nessas crianças, que estão chegando ao mundo e vendo qual é a situação do planetinha que elas estão vivendo. E elas são crianças, que vão crescer e vão mandar.

Você chegou a sofrer algum tipo de agressão em sua carreira?

Nunca. Só recentemente quando dei uma entrevista em Portugal criticando o governo Dilma e fui chamado de esquerdista maconheiro a fascista de direita.

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Como foi aparecer seminu com os Secos & Molhados na TV, no programa Silvio Santos, por exemplo?

Acho que hoje um grupo como os Secos & Molhados apanharia na rua. Não sei… Naquela época eu observei que, como o Brasil vivia sufocado, senti que emanava do povo uma simpatia muito grande por aquela maneira da gente se apresentar. E as crianças gostaram muito daquilo. Enquanto os adultos achavam que aquilo era sexualizado, as crianças não viam isso. Na cabeça delas a gente era um desenho animado. E eu não queria ocupar o espaço da mulher. Eu queria ocupar um espaço híbrido, onde eu pudesse ser qualquer coisa, ser compreendido de qualquer maneira, como um inseto, um unicórnio. Às vezes vinha com um chifre na testa, antenas, não era uma figura humano. Era sexualizado porque eu tinha 30 anos. Como eu ia conter? (risos).

Toda essa criatividade tem muito a ver com a sua imersão no teatro. Você é um ator, iluminador, diretor…

O teatro me preparou para isso. Porque antes dos Secos & Molhados cheguei a fazer algumas peças e por acaso todas eram musicais onde eu tinha que cantar e dançar. Em uma eu saía de cena três vezes e voltava como outro personagem. Então cheguei nos Secos & Molhados e criei aquele personagem que não era um só porque cada dia era um. Não tinha uma única maquiagem. Cada dia eu me pintava do jeito que eu queria, colocava em cima de mim o que eu queria, era muito livre. As primeiras vezes eu usei calça, mas eu quase morri de tanto calor. Aí tirei as calças e vesti um tapa-sexo e por cima dele eu pendurava panos e outras coisas. Fazia os adereços e alguns amigos começaram a fazer objetos para mim como testas com bicos de passarinho, asas de passarinho.

Você sempre usou figurinos exuberantes. Onde estão eles?

Alguns estão comigo, outros no Senac em São Paulo. No show “Feitiço”, por exemplo, eu descia uma escada num palco cheio de bananeiras e eu usava uma calça toda de babado amarelo e uma roupa de moedas que pesava dez quilos. O colete eu tenho guardado até hoje, mas eu tinha uma cabeça linda, que estupidamente eu desmanchei, com um dólar de prata gigante bem no meio da minha testa (risos). E essas roupas todas estão no Senac, numa sala ambientada com ar condicionado. Mas as roupas  mais lindas, com crina de cavalo, se perderam.

O que você canta em casa?

Nada. Raramente eu cantarolo em casa. Não ouço muita música. Escuto mais quando vou gravar, quando estou procurando repertório. Porque como eu recebo muita coisa eu guardo, e quando vou fazer um disco eu dou uma geral.  Mas coloco para tocar e vou fazer as minhas coisas. Se algo chama a minha  atenção aí vou lá, vejo que música é aquela, marco o nome, seleciono, depois ouço de novo e vou formando o repertório assim. Mas não sou de ouvir muita música não.

Você está pronto para fazer um novo trabalho ou vai dar uma parada após o “Atento aos Sinais”?

Já tive época de fazer dois trabalhos ao mesmo tempo. Ia começar agora um trabalho novo, mas vai atrasar para depois das Olimpíadas. Era para acontecer em abril, um repertório muito difícil, e foi adiado para setembro, o que me deixou tranquilo. Ainda tenho muitos shows do “Atento aos Sinais” e se o novo espetáculo fosse em abril ia chegar um momento em que eu teria que fazer os dois ao mesmo tempo. Seria praticamente impossível porque preciso estar com minha voz descansada para poder cantar um repertório dificílimo. É um projeto da Ana Carolina Soares, diretora de cinema, que me convidou para participar e eu vou cantar Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos e um ator vai falar poemas de Gonçalves Dias.

Muitos artistas decidem em algum momento de sua carreira interpretar no palco, na íntegra, um disco que consideram significativos em suas trajetórias. Você nunca pensou em fazer isso?

Eu tive vontade de reprisar o “Bandido”, que foi o show mais abusado da minha vida. Eu trocava de roupa toda, inclusive de tapa-sexo, na frente da plateia. Tinha um biombo que se eu ficasse na ponta do pé os pentelhos pulavam para cima. Havia um espelho oval atrás de mim que quem sentasse de um determinado ângulo na plateia me via nu pelo espelho. Mas eu estou velho para fazer isso. Gosto dessa brincadeira de trocar de roupa, de provocar.  Naquele show eu pegava um abano de acender brasa, ficava me abanando e cantando “Boneca Cobiçada” (risos). Era tudo uma provocação do começo ao fim, porque eu não me considerava a boneca cobiçada, mas as pessoas achavam que eu estava falando de mim. Isso era uma subversão. E quando vi que as pessoas viam dessa maneira eu achei mais subversivo ainda. E estamos falando de 1976, o auge da repressão política. E a subversão é inerente à arte, mas não é obrigatória. ‘Tem Gente com Fome’, que era uma música dos Secos & Molhados, eu só consegui gravar em 1986. Todo ano eu mandava para a censura, até que liberaram.

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Quem você ainda não gravou e gostaria de gravar?

Tenho muita vontade de cantar alguma coisa do repertório do Fagner porque tem coisas dele que eu adoro. Mas isso qualquer hora rola.

Como foi viver o “Bandido da Luz Vermelha” no cinema? Você vai ao cinema, acompanha as produções latinas?

Adorei fazer o “Bandido”. E também fiz o “Ralé” com a mesma diretora, Helena Ignez. Ela é danada. Para fazer o “Bandido da Luz Vermelha” não teve muito ensaio porque ela não queria. O cinema dela é de outra maneira. Ela prefere que você não ensaie. Eu decorava o texto e ela pedia para eu decorar sem intenção. Mas na hora de falar você vai botar a sua intenção. E eu entrei naquele personagem que tinha toda a descrição que ela havia me dado: ele está há 35 anos preso, é mal-humorado, rancoroso, é das trevas (risos), então é isso que você tem que ser. E eu assisto muito cinema latino-americano no Canal Brasil. Sei que tem coisas boas recentes do cinema argentino, mas não tenho visto. Eu quase não vou ao cinema, quase não saio de casa, porque também paro muito pouco na minha casa. Queria muito ter visto “Que Horas Ela Volta?”, da Ana Muylaert. A Regina Casé é muito boa atriz. Muito melhor do que ela pensa.

Você cantou “Deus salve a América do Sul”. Acha isso profético?

Tivemos a ilusão de que tinha acontecido uma mudança na América Latina. Mas tudo que vemos agora acontecer na Venezuela, no Brasil, na Argentina, que achávamos que seria uma coisa maravilhosa, está caindo em toda parte.

Como o público latino recebe você?

Fui muitas vezes à Argentina, sempre muito bem recebido, mas quando fui cantar pela primeira vez em Montevidéu o público do Uruguai foi de uma tal extroversão e receptividade que, na terceira música, depois que eu cantei “Vida Louca”, parecia que o show havia terminado. Foi uma coisa muito louca, extrovertida. Eu já tinha ido muitas vezes ao Uruguai para cantar em cassinos até que eu achei que se fosse para cantar em cassinos eu não voltava mais. E nunca mais fui. E ter ido agora foi maravilhoso.

No Uruguai, você teve um encontro com o ex-presidente Pepe Mujica? Qual a sua impressão?

Foi tranquilíssimo. Aconteceu no final de 2014, antes das eleições. A produtora que me levou para fazer o show é casada com um senador. Eu não sabia de nada disso. E ela perguntou se eu gostaria de conhecer o presidente. Eu disse que sim, mas perguntei por que ele me receberia. E ela falou que o Mujica queria me conhecer porque ele gosta muito de determinadas opiniões minhas. Depois eu entendi tudo. Fui ler uma biografia dele e vi que falo coisas que ele também fala sobre direitos humanos, por exemplo. Ele é um homem maravilhoso e eu fiquei muito feliz de ter ido lá. (leia aqui entrevista que a Calle2 fez com Pepe Mujica)

Aliás, você fez um show em São Paulo pelos Direitos Humanos recentemente.

Sim, e aconteceu uma coisa estranha depois do show. Eu saí de lá com um amigo e fomos até uma lanchonete nos Jardins. Eu estava lá sentado e veio um japonesinho com uma camiseta amarela que eu nem olhei e pediu para tirar uma foto comigo. Eu disse que sim, como digo para qualquer pessoa. No dia seguinte, vários amigos me mandaram a foto com ele, que estava nas redes sociais, me dizendo que o menino era um tal de Kim Kataguiri, de extrema-direita, com a legenda “um grande ídolo e defensor do impeachment”. Aí eu falei com a Belinha, que faz minha divulgação, e ela disse que era melhor esperar porque se colocasse o foco nele e reagisse essa talvez fosse a intenção dele. Como eu ia adivinhar quem era aquele menino? Nunca tinha ouvido falar nele.

Você costuma criar muito à noite? Lê? Escreve?

Não. Eu tenho que tomar um ansiolítico porque senão minha cabeça destapa. Eu faço três shows numa noite só na cabeça. É muito criativo, mas é muito desgastante. Preciso de uma coisa para a cabeça aquietar. Quando viajo levo comigo uma fita crepe para lacrar as janelas porque se entrar uma fresta de luz eu acordo e não durmo mais. Eu mesmo prego porque tenho vergonha de pedir (risos). E peço para deixar como está. Tenho a cabeça muito ligada, por isso não tomo drogas que me liguem. Eu gostava de Mandrix [droga feita a base de metaqualona, um sedativo usado em comprimidos para dormir nos anos 70], um remédio maravilhoso que você tomava e não dormia, mas ficava sem censura absolutamente nenhuma (risos). Ficava cheio de amor para dar. ” Mas não tem mais no mundo. Era a droga do amor. Todo mundo tomava. Eu já provei de tudo, tomei de tudo, mas nunca gostei de nada que me acendesse. Eu gosto de coisa que me relaxa, que me acalma.

Como é isso de ir para o meio do mato?

Eu gosto muito de bicho. Essa está comigo há quase trinta anos [Ney aponta para Garota, uma fêmea de macaco prego dentro de uma gaiola gigante que fica na varanda de sua cobertura e vive solta pelo local]. Ela anda por tudo. Ganhei do Manoel Poladian [famoso empresário de artistas]. Cheguei em casa, tinha uma encomenda dentro de gaiola de gato. Quando abri ela estava com um cintinho de couro que serve como coleira. Aí falei: ah não!  Coloquei ela de volta na gaiola, fui pegar uma tesoura, voltei, e ela já estava dormindo. Ela acordou, veio na minha mão, eu cortei o cinto e ela entendeu tudo na mesma hora. Agora, sabe o que está acontecendo lá no meu sítio em Sampaio Corrêa? Eu estou soltando passarinhos que foram domesticados, foram recolhidos pelo Ibama por conta do tráfico de animais e foram levados para lá. O Ibama recolhe, leva para um centro de triagem de animais que está numa situação horrorosa, sem dinheiro para dar comida para os bichos. Eles ficam numa quarentena, eu banco todos os exames deles porque se você soltar um bicho doente você contamina toda a mata. Se não tiver doença eles vão para um espaço de transição no meio da mata, com telinha e água corrente. Numa certa hora vamos lá e abrimos a porta para eles saírem. A maioria vai embora, mas muitos estão ficando por ali. E eu gravo horas e horas de sons dos pássaros. E eu solto todos. Dessa última leva foram soltos uns 60. Um deles não foi embora porque não estava voando e ficou dentro de uma gaiola grande na cozinha de casa. E esse que não foi embora canta e os outros vêm. E a minha casa está sendo invadida por passarinhos. O redor dela está virando uma sinfonia de passarinhos. E eu gravo todos aqueles sons. Tenho horas e horas de gravação.

Você lida bem com o estar só?

Não tenho nenhum problema em ficar sozinho. Sempre gostei. Preciso. Não que eu seja antissocial. Sou uma pessoa normal, gosto de gente. Mas não tenho problemas de ficar sozinho porque as pessoas têm, principalmente dentro do mato. As pessoas acham que detrás de cada árvore tem uma cobra pronta para lhe atacar quando você passar. E as pessoas deveriam ter medo de estar no Leblon.

O que falta pro dia nascer feliz?

Está tudo errado. Falando em termos do nosso país. São milhões de reais desviados pela corrupção. Se esse dinheiro tivesse sido posto a favor do povo brasileiro nós teríamos uma saúde, educação, transporte e moradia exemplares. Vejo coisas absurdas porque viajo pelo país inteiro. No Pará vi uma fila por volta das duas horas da tarde só com gente idosa, num calor absurdo. E me disseram que as pessoas estavam na fila para tomar uma sopa. Isso é imperdoável num país onde se joga grãos de milho no meio do entulho e brotam pés nos escombros de concreto.

É possível definir o Brasil numa frase?

Está muito difícil. A situação está muito cínica. O cinismo impera. Mas tem São Paulo. Apesar de tudo, São Paulo é desregrada. Um dia desses passei numa esquina e só tinha meninas lésbicas adolescentes diante de um bar. Então São Paulo é tipo rompe e rasga (risos).

05 Jan 11:34

2016

Eis então que, na noite da virada, me aparece em sonho uma figura toda estropiada, coberta de hematomas, seu corpinho esquálido mal dando conta de segurar os andrajos. Naquele furta-cor emocional dos sonhos, o pobre diabo aparentava ao mesmo tempo velho amigo e desconhecido. "Quem é você?". Com um fiapo de voz, ele sussurrou: "Sou 2016".

"2016?! Que aconteceu? Você nem começou, já tá nessa situação?". "É que eu venho de 2015, meu filho. Eu sou 2015! 2015 rebatizado. 'Rebatizado', ouviu bem? Não recauchutado, nem remasterizado: 'Re-ba-ti-za-do'!". A euforia levou o ano a um acesso de tosse do qual pensei que não fosse sair vivo, mas saiu, vivo e sedento: "Será que você podia me arrumar um copo d'água?". "Claro. Gelada ou natural?". "Natural. Se eu pegar uma gripe, não chego a 2017. E, se não for pedir muito, uma bebidinha ia cair bem."

Corri para a sala. Achei meia garrafa de uísque sobre a mesa, junto aos restos da ceia. 2016 surgiu capengando pelo corredor, botou seus olhos famintos no pernil e tive que lhe servir um prato. Depois de banquetear-se, tomar três doses e ouvir deste esforçado cronista algumas piadas ruins sobre a "voracidade do tempo" -eu só tava tentando descontrair... -, o ano desabafou.

"É muita pressão, meu filho. É expectativa demais nas minhas costas. O governo acha que eu vim salvá-lo. A oposição quer que eu venha redimi-la. E o PMDB?! Só se eu dedicasse meus 366 dias... Mas como eu poderia dedicar meus 366 dias ao PMDB, em ano de Olimpíada? O Dunga quer que eu faça o Brasil esquecer o 7 x 1. O COB quer que eu bata o recorde nacional de medalhas. Tudo na última hora. Tivessem falado comigo quando eu me chamava 2002, 2003, mas não. Chegam esbaforidos, agora: 2016, medalhas! 2016, crescimento! 2016, impeachment! 2016, sangue! 2016, paz! Ah, que ingênuos vocês são! Eu não posso nada disso, sabe por quê?". "Por quê?". "Porque eu não existo!". "Bom, eu tô te vendo". "Isso é um sonho!". (De fato, mesmo sem existir, 2016 estava coberto de razão). "Eu sou um número no calendário. Rabiscos na areia da praia. Um post-it colado no vento. Veja só: às 23:59 de 2015 um sujeito jogou um moeda do alto do Martinelli. Quando deu o primeiro segundo de 2016, ela estava a meio caminho do chão. Sabe o que aconteceu com a moeda?". "O quê?". "Nada, pombas! Continuou caindo!".

2016 se serviu de mais uísque. "Eu não entendo vocês. Quando vocês fazem aniversário, vocês ficam mais sábios? Vocês imediatamente se dão conta da finitude e da urgência e da inutilidade e da beleza de tudo?". "Acho que não". "Então por que vocês esperam tanto de mim? A terra vai continuar girando, passando pelo mesmo lugar de sempre, em torno do mesmo sol. Posso pegar umas lichias?". "Por favor". "Outro dia, um grego disse que um homem nunca entra duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez já não é o mesmo homem nem o mesmo rio". "Heráclito". "É. Esse aí. Uma besta quadrada! É sempre o mesmo homem, sempre o mesmo rio, sempre eu, igualzinho". Dito isso, 2016 matou o uísque num gole, soltou um arroto formidável e saiu trôpego pela madrugada, rumo a fevereiro, já no ponto pro Carnaval.

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21 Dec 11:22

Arkhipov, Dr. Pacheco, chocotones

Se você está lendo esta crônica, improvável leitor, é porque em 27 de outubro de 1962 um marinheiro russo chamado Vasili Arkhipov teve um momento de iluminação. Naquele dia, o submarino B-59 no qual Vasili servia, no mar do Caribe, foi torpedeado por um navio americano. O clima não era dos melhores entre Washington e Moscou, em 62. Auge da Crise dos Mísseis, a terceira guerra mundial parecia iminente, o capitão do submarino não conseguia contato com a URSS, concluiu que a hecatombe nuclear já havia começado lá na superfície e ordenou que Vasili executasse a parte que lhes cabia naquela barafunda: disparar algumas ogivas atômicas contra os EUA. Vasili Arkhipov discordou, bateu boca com o capitão e o convenceu a esperar mais um pouquinho, razão pela qual todos nós estamos aqui, agora, neste final de 2015, brindando em infinitos happy hours, parcelando compras no cartão e nos entupindo de chocotone, em vez de comermos baratas fluorescentes e gafanhotos com três cabeças no fundo de uma caverna radioativa. (No próximo happy hour, por favor, lembre-se de fazer um brinde ao Vasili).

Se eu estou escrevendo esta crônica, improvável leitor, é porque um dentista pernambucano chamado Dr. Pacheco encheu a lata em 11 de fevereiro de 1943. Naquela tarde, Dr. Pacheco estava indo de Lins a Bauru, de trem, quando conheceu um jovem estudante de medicina. Os dois ficaram batendo papo no bar, o estudante tomando café, o Dr. Pacheco, cerveja. Tanta cerveja que, a certa altura, trancou-se no banheiro masculino, abraçou a privada e dali não saiu mais. Uma hora depois, o futuro médico, que era muito ordeiro, mas estava muito apertado, acabou indo no banheiro feminino. Ao sair, foi espinafrado pela garota que esperava na porta. Era uma garota tão linda, ele dizia, que não lhe pareceu má ideia passar o resto dos seus dias sendo espinafrado por ela: tiveram sete filhos, 15 netos (entre os quais eu me incluo) e 25 bisnetos. (Nunca mais souberam do Dr. Pacheco, embora até hoje seja um costume, nos Natais da nossa família, erguer um brinde a ele).

Lembrei do dentista pernambucano nesta semana, ao ler numa revista sobre o marinheiro russo. Lembrei do meu colegial, da fase epifânica em que me dei conta de que a vida não era uma sucessão lógica e justa de causas e efeitos razoavelmente planejáveis, bastando organizar tudo direitinho para chegar aonde a gente quisesse. Se alguma lógica havia, era não haver lógica nenhuma: absurdo o Big Bang, absurdas as mitocôndrias, absurda a arte do encontro, em meio a tanto desencontro.
Depois cresci, o holerite eclipsou o espanto e parei de me preocupar com o assunto. Às vezes, no entanto, ele volta, feito um soluço. Penso: cazzo, Deus não existe, isso tudo não tem o menor sentido e não fosse o porre de um desconhecido, 72 anos atrás, meu filho não estaria agora batendo esta Galinha Pintadinha contra o taco do assoalho.

Não sei bem por que tô escrevendo essas coisas. Acho que é porque é Natal (meu filho atira longe a Galinha Pintadinha e gargalha) e sinto um impulso meio hippie de dizer valeu, Vasili, valeu, Pachecão, valeu, Big Bang, valeu mitocôndrias, valeu, leitor. Comamos chocotones, comamos chocotones porque não há mais metafísica no mundo senão chocotones.

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14 Dec 15:58

Numa escola ocupada

Nós fomos falar de literatura, mas esperávamos que a discussão migrasse para a proposta de fechamento das 92 escolas estaduais em São Paulo, o impeachment, a crise hídrica e outros temas espinhosos do noticiário. No entanto, a conversa que eu e os amigos escritores Fabrício Corsaletti, João Paulo Cuenca, Chico Mattoso e Paulo Werneck tivemos com os alunos de uma das 196 escolas ocupadas, no último domingo, não poderia ter sido mais diferente do que imaginávamos.

"Alckmin" foi pronunciado uma vez só –e por mim. A política, nesse sentido menor, mesquinho, que vem sendo praticado pelo país nos últimos 515 anos, passou longe e a literatura foi apenas o veículo que nos levou ao que realmente interessava: a Política com P maiúsculo, no sentido que os atenienses deram ao termo 2.400 anos atrás e que estes alunos e alunas da rede pública vêm resgatando desde que entraram em suas escolas de manhã cedinho, há quatro semanas, e não saíram mais.

Dormem por lá, cozinham, tomam banho, fazem faxina, reparam infiltrações e recebem mais atividades extracurriculares, nestes 30 dias, do que em toda a vida escolar. "A gente nunca tinha tido um debate aqui", disse uma das alunas. "Esse ano, todo mês eu tentava trazer alguém, mas a diretora proibia." Desde a ocupação, com a ajuda de voluntários, organizaram shows, aulas de geografia, física, culinária, ioga, dança, teatro, improvisação, quadrinhos, música, debates sobre dívida pública, questões de gênero –e a lista continua.

Em uma hora e meia, não ouvimos nenhum desses clichês de Facebook sobre a roubalheira petralha ou a privataria tucana. As questões saltavam o estéril Flá-Flu e aterrissavam no solo bem mais fértil da experiência cotidiana. "A gente só teve poesia no terceiro colegial, pro vestibular." "Os professores entram, botam tudo na lousa e acabou." "A diretora fica vários meses viajando e quando aparece, não tá nem aí." "Encontramos três mesas de som, tela, tinta, um monte de papéis a que a gente não tinha acesso."

A ocupação começou contra a proposta de fechamento de 92 unidades de ensino (já adiada pelo governo), mas no processo os alunos descobriram questões mais importantes. Que as escolas não precisam ser ruins. Chatas.

Abandonadas. Que "público" não é do governo e tampouco de ninguém, mas deles. Aprenderam, por si sós –"fazendo arroz pra cem negos" e decidindo, em assembleia, se o cigarro seria ou não liberado, lá dentro (não)–, talvez a lição mais importante que se pode levar da escola: que são donos dos próprios narizes e responsáveis pelo mundo em que vivem. Agora, se perguntam: se com pouca idade e experiência eles conseguem administrar aquele espaço tão bem, por que o Estado mais rico da oitava economia do mundo não consegue?

No fim do papo, uma garota do terceiro colegial nos falou: "O que eu mais queria era tá no primeiro, pra poder estudar três anos nessa escola do jeito que ela vai ser daqui pra frente, depois da ocupação". Me deu um baita nó na garganta: ainda não sei se foi pela esperança que essa experiência me traz num momento tão trevoso da história nacional ou se pela tristeza de ver que a única resposta que o país parece ter para os anseios destes meninos é soco, cassetete, bomba e gás lacrimogêneo.

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14 Dec 15:50

Ruídos 3

by Andrício de Souza

13 Dec 22:28

COMBO

by ricardo

ligue agora
09 Dec 13:35

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09 Dec 13:34

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09 Dec 11:52

Ruído 2

by Andrício de Souza
30 Nov 17:39

Ruídos #1

by Andrício de Souza

27 Nov 16:20

A capa de hoje do jornal Estado de Minas é assunto porque não se poupa de falar o que tem de ser dito

by Marcela Campos

Vivemos pra ver um fodão de um dos maiores bancos de investimentos do Brasil ser preso pela Polícia Federal. Ontem, André Esteves foi em cana junto com o líder do governo Dilma, Delcídio do Amaral (PT-MS) – essa merda toda por causa da Lava Jato e as investigações que, a duras penas, estão driblando os obstáculos pra chegar onde precisam.

Nos últimos dias também vimos um mar de lama invadir o Rio Doce e a vida de incontáveis mineiros. Já chegou no Espírito Santo e no sul da Bahia, devastando não só o ecossistema, não só o turismo da cidade, mas a pesca, o trabalho e os meios de sustento de gente pelo Brasil todo.

Detalhe: os riscos tóxicos da catástrofe ainda não foram divulgados. E a ONU já soltou um relatório dizendo que as medidas tomadas pela Samarco e pelas controladoras Vale e BHP Billiton foram “claramente insuficientes”.

Quer ficar mais possesso? A Samarco está em dívida de R$ 22 milhões de reais com a prefeitura de Mariana, que está esperando, desde 2010, valores da Compensação Financeira pela Exploração dos Recursos Minerais (CFEM). Dinheiro esse que, sabemos, a cidade está precisada pra prover dignidade pra quem está sem ter onde morar.

Metade dessas informações eu já sabia. A outra parte delas eu aprendi em três minutos de leitura. Pois é, meu amigo, eu tenho uma notícia boa pra você: se tem uma coisa que tá funcionando em Minas, essa coisa é o jornalismo.

Parte da internet parou hoje de manhã pra ver e elogiar a capa do jornal Estado de Minas.

Bonita ou não, da minha opinião política ou não, cumpriu a função de pautar a conversa, botar a boca no mundo.

Só quem já fechou uma publicação sabe como pode ser difícil achar medidas certas: qual a quantidade de informação suficiente pra incitar a leitura, mas adequada pro espaço da página? Qual a melhor diagramação possível pra que o título mais importante possa ser visto a olho nu, de longe, na banca e, ainda assim, os espaços em branco tenham equilíbrio? Qual informação é destaque aqui? Há hierarquia entre o que se tem a dizer?

São muitos fatores a se considerar, e o Estado de Minas, nessa edição, achou o ponto de equilíbrio. Arriscou pesar no conteúdo, se aventurou ao estampar sua capa de lama, mas soube servir ao leitor quando escolheu por uma página limpa, horizontal, organizada. E crítica.

Além disso, a redação não se furtou do olhar apurado e coeso: diferentes assuntos se encontram num ponto em comum só por buscarem, pelo menos algumas vezes, representar quem os lê.

Não vou dizer que não há controvérsia: teve quem não gostasse. Os comentários negativos apareceram –a capa é simplista, feita para analfabetos políticos, sumária.

Sim, ela é sumária. A crítica precisa, sem dúvidas, ser desenvolvida. Mas é só uma capa.

26 Nov 10:11

scream

by Lunarbaboon

24 Nov 23:24

O gueto de Mariana

Outro dia um amigo me ligou pra reclamar da vida. Estava trabalhando tanto, ele me disse, que não fazia a menor ideia do que se passava no mundo: há meses não lia jornal, não via TV, não ouvia rádio. Queria um consolo, mas recebeu a minha inveja: "Você não tem ideia da sua sorte! Acho que, desde que a gente nasceu, não teve época melhor pra não saber o que se passa" –e, veja bem, a gente nasceu numa ditadura.

No final de uma ditadura, é verdade. O governo dos militares chegava ao fim com a vergonhosa anistia, a esquerda chegava à praia com o desavergonhado "desbunde". O tempo ainda estava fechado, mas a previsão era de sol, adiante. Gilberto Gil cantava "Não se incomode/ O que a gente pode, pode/ O que a gente não pode explodirá" e "explodirá" rimava com "poderá" e "brilhará", não com homens-bomba, pautas-bomba, aviões derrubados, chacinas e barragens arrebentadas.

Vejo na TV a mãe do menino de dez anos assassinado com um tiro na cabeça, no Alemão, revoltada com o inquérito da polícia, inocentando os PMs. Vejo aqueles índios mineiros, mal ajambrados, macambúzios, sentados num trilho de trem, à beira do ex-rio Doce. Leio a carta do viúvo aos terroristas que mataram sua mulher, em Paris, deixando-o com o filho de um ano e meio. "Cara, que sorte a sua não ler jornal!", digo ao meu amigo. "Eu ontem chorei ouvindo a CBN. Que tempos são esses em que a gente chora com a CBN?"

Serão os tempos? Será que o mundo piorou ou sempre foi assim e eu é que fiquei adulto? Num esforço de otimismo –veja a que ponto chegamos–, penso na Segunda Guerra. Lembro do depoimento de um sobrevivente do Holocausto, no documentário "Shoa". Com outros prisioneiros do gueto de Varsóvia, o homem criou um esquema elaborado e perigoso para passar cartas para fora da área em que estavam confinados. Por anos, essas cartas foram enviadas a governos, instituições e pessoas importantes de vários países. O homem tinha certeza de que, uma vez que se soubesse do que acontecia ali, alguém tomaria uma providência. Em seu depoimento, o horror nazista parecia chocá-lo menos do que o descaso geral.

Lembro do judeu polonês ao ouvir e fazer tantas vezes a pergunta, depois dos atentados de Paris: como pode um ser humano ter tamanho descaso pela vida de outros seres humanos a ponto de metralhá-los indiscriminadamente? Como pode o mundo saber o que Hitler fazia com os judeus, por anos, sem tomar uma atitude?

Pois, na última quinta-feira, tive a resposta. Não uma resposta sociológica, histórica, geopolítica: uma resposta íntima, pessoal. Num pé de página, no jornal, li: "Atentado terrorista mata 45 na Nigéria" e não senti nada. Ou quase nada. Pensei, "puxa, que triste", mas não chorei. Só depois é que veio o incômodo, não como um nó na garganta, mas como um embrulho no estômago: eu sou o destinatário das cartas de Varsóvia. Todo dia elas me chegam via e-mail, Facebook, Twitter, vindas dos guetos do Alemão, da Síria, de Barueri, de Lagos, do Pará, do Afeganistão. Algumas vezes dou um share, noutras mando um casaco, outro dia fui até o Brás, comprei umas esfirras de um refugiado, me senti bem por semanas. Na maior parte do tempo, contudo, rolo rápido a tela pra cima, fingindo não ter nada a ver com essa lama, e vou cuidar dos meus assuntos.

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18 Nov 11:52

Fleeting

by Lunarbaboon

16 Nov 17:08

Adam 2.0

Adam 2.0
01 Nov 16:14

Internet Facts (#3)

by ricardo coimbra
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Outras tiras da série aqui e aqui
01 Nov 16:13

#primeiroassedio

Ninguém sabe ao certo quantas mulheres são estupradas, todos os anos, no Brasil. Segundo o 8° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no fim de 2014, 50.224 ocorrências foram relatadas à polícia em 2013. O problema é que só uma pequena parcela das vítimas desse crime busca a polícia: estudo do Ipea (goo.gl/4s4OGB) estima que em 2013 aconteceram, na verdade, 527 mil estupros. Também de acordo com o Ipea, 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Mais da metade tem menos de 13 anos. Mais de dois terços dos agressores são familiares, amigos ou conhecidos das vítimas.

Um crime de tal forma disseminado em nossa sociedade não se perpetuaria impune e silencioso sem o machismo amplo, geral e irrestrito que reina por estes costados. Eis a razão pela qual, de tempos para cá, muitas mulheres venham advogando tolerância zero com cantadas de rua, assovios e aquela chupada grotesca —"Sfffrrrrrrrr"— de quem tá tentando tirar carne dos dentes sem o auxílio de um fio dental. É evidente que quem assovia para uma mulher não comete ato equiparável ao estupro, mas é o caldo de cultura do "fiu-fiu" que arruma a cama para o abuso do titio —e do padrasto, do pai, do chefe, do serial-encoxador de transporte público, do covarde anônimo num terreno baldio. O estupro é apenas o ato mais extremado nascido da convicção de que qualquer manifestação do desejo masculino deve prevalecer sobre o incômodo (ou horror) que ele possa causar às mulheres.

Tal convicção explica por que, no dia 20 de outubro, durante a exibição do "MasterChef Júnior", alguns tuiteiros se sentiram à vontade para divulgar ao mundo piadas de cunho sexual com uma das participantes do programa, de 12 anos. Se, com todo mundo olhando, temos o desplante de rir imaginando a violação de uma menina de 12 anos, o que não fazemos quando não há ninguém por perto?

A hashtag #primeiroassedio, criada pelas feministas do grupo Think Olga, em resposta aos tuiteiros do "MasterChef", respondeu dolorosa e corajosamente à pergunta. Em poucos dias, a hashtag fez surgir nas redes sociais mais de 100 mil relatos de mulheres sobre abusos sofridos na infância e na adolescência, escancarando a realidade dantesca que as meninas brasileiras sempre enfrentaram em silêncio. Desde então, minha timeline se transformou num bizarro patchwork de amigas, parentes e colegas sendo abusadas, de todas as maneiras, aos sete, nove, 12 anos, por tios, amigos dos pais, vizinhos, desconhecidos. Não tinha ideia de que a situação era tão grave, nem tão próxima.

Mais assustador que os relatos no #primeiroassedio, os comentários no "Masterchef" e os dados do primeiro parágrafo, talvez só o fato de que a maior indignação em torno da violência contra a mulher, nos últimos tempos, tenha sido o tema cair na prova do Enem. Neste país de meio milhão de estupros, parece haver mais preocupação em atacar o nosso incipiente feminismo do que em iluminar as contradições do nosso torpe patriarcalismo. Preocupação, aliás, absolutamente desnecessária, pois luminares da civilização como Cunha, Feliciano e Bolsonaro estão conseguindo reverter, em alguns meses, as poucas conquistas das últimas décadas, logrando preservar, assim, as bases da tradicional família brasileira —estupro incluído.

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01 Nov 15:54

720 – Ouroboros.

by gomba

Ouroboros

Enem.

30 Oct 10:19

My Brain is an Asshole

by boulet
29 Oct 14:49

Criança, tecnologia e a Academia Americana de Pediatria

by noreply@blogger.com (Rafael Noris)
Uma coisa bonita da ciência é que ela está sempre em mudanças. Uma coisa feia da ciência é que ela é feita com interesses (nem sempre honestos). De tanto ler artigos que defendem uma coisa e outros que defendem outra, comecei a me perguntar (mesmo antes de ser pai): há quem a conclusão dos estudos científicos interessa?

Até mês passado sempre que se falava em tecnologia e crianças, se invocava a Academia Americana de Pediatria, que dizia: não deixe crianças menores de 2 anos se exporem a tecnologia de jeito algum, smartphones e tablets são os vilões do desenvolvimento (aposto que meus avós ouviram isso sobre a televisão e meus pais sobre o videogame). Com crianças um pouco maiores permitiam o uso, mas ainda alarmista, cheio de limites (1 hora por dia, no máximo) e apontando sobre os possíveis retardos que elas poderiam ter nas relações sociais.

evilpeacock via Compfight cc


Esses papos apocalípticos sempre me deram uma preguiça enorme, sempre me soaram conservadores. Seja com a filosofia de esquerda que reclama da sociedade líquida ou da direita que quer que as crianças se encaixem em seus modelos obedientes e focados. Há grandes indústrias se enriquecendo com o medo que patrocinam.

Seguindo a onda do terror, vários estudos indicavam a mesma coisa, a cada 1 artigo defendendo a tecnologia vinha 10 falando que ela arruinaria a vida das crianças. Mas o mundo dá voltas e eis o que virou notícia nesse mês: a Academia Americana de Pediatria decidiu rever sua política de crianças e uso de aparelhos eletrônicos!

3 pontos que foram levantados no novo estudo e gostaria de destacar:

- O digital é apenas outro ambiente, com seus pró e contras como qualquer outro.
- A qualidade do conteúdo é mais importante que o formato e o tempo de uso. 
- As relações online são parte integral do desenvolvimento de jovens e as mídias sociais os ajudam na formação da identidade.

Tem um monte de outras coisas interessantes, vale a pena ler o artigo:
http://aapnews.aappublications.org/content/36/10/54.full


Mas o que quero com esse post? Bem, era só desabafar mesmo. Não quero cagar regra, exceto que cada um é cada um e que a gente deveria se informar sempre e questionar todos os discursos, a favor ou contra a tecnologia. E que cada um siga seu caminho, sem nóias nem julgando os coleguinhas de paternidade/maternidade :-)

Dica de Livro: Tudo que é Ruim é Bom Pra Você, Steven Johnson.

Adoraria continuar o papo nos comentários e ler outras opiniões, o que você acha disso? Como é na sua casa a relação das crianças com a tecnologia?
28 Oct 10:56

The Secret Behind The Disappearing Milk Magic Trick

by noreply@blogger.com (Damn Cool Pics)
Have you ever seen that trick where someone pours milk into a rolled up newspaper and it magically disappears? Have you ever wondered how it's done? Fear not because the secret behind this common magic trick is about to be revealed.























23 Oct 12:20

The Interior Of An Aston Martin Lagonda Is Out Of This World

by noreply@blogger.com (Damn Cool Pics)
Aston Martin Lagonda was only made between 1974 and 1990, the the car's interior has left quite the lasting legacy.



















23 Oct 12:16

I Want to Believe

by boulet









19 Oct 15:50

Dois mil e crise

"Creio que, se uma crise quiser mesmo impressionar os portugueses, vai ter de trabalhar a sério", disse o Ricardo Araújo Pereira, sobre a crise portuguesa. "Um crescimento zero, para nós, são amendoins. Pequenas recessões comem os portugueses ao pequeno-almoço."

O dólar chegou a quatro reais! Ai, meu Deus! E agora, Brasil? Não estamos acostumados com essa crise toda! Calma aí: quem não estamos?

Quem ouve a lástima de um brasileiro talvez acredite se tratar de um norueguês. Parece que o sujeito viveu séculos de bonança bruscamente interrompidos por um fenômeno estranho chamado pobreza, certamente inventado por um governo de esquerda.

Quem se choca com uma moeda desvalorizada ou não é brasileiro ou tem a memória muito curta. Do alto dos meus ralos vinte e nove anos lembro perfeitamente de levar um calhamaço de notas –isso mesmo, jovens, um calhamaço, isto é, um bolo, quiçá uma resma de notas– para comprar uma revistinha do Cascão (no Rio, chamávamos gibi de revistinha). Lembro de perceber que tinha mais notas na mão do que páginas na revista. Ou seja: financeiramente, era mais vantajoso ler notas do que gibis. Ainda assim, preferia ler gibis. Já nessa época pertencia à esquerda-almanacão-de-férias.

Quem está chocadíssimo com escândalos de corrupção certamente não estava por estas bandas durante as últimas décadas. Imagino que não tenha ouvido falar em Collor, Privataria, Anões do Orçamento, Banestado ou na Compra da Reeleição de FHC (caso o nome do escândalo não seja autoexplicativo, cabe a mim explicar: a reeleição de FHC foi comprada. E ficou por isso mesmo). Para os que estão com preguiça de pesquisar no Google, vale lembrar que, nos mesmos anos FHC, o famigerado Renan Calheiros era o ministro da Justiça. Isto é: representava a ética do país. Renan fucking Calheiros.

Quem pensa em ditadura militar e lembra de um período de progresso deve gostar da ideia de ter a boca amarrada a um cano de descarga. Eu não gosto dessa ideia. Mais do que isso: me dá aflição. Sou meio fresco quando se trata de tortura.

Quem pensa em Getúlio com carinho deve ser parente de Getúlio.

Quem pensa no Brasil Império com carinho certamente não era negro.

São tempos de vacas magras, sem dúvida. Mas a dieta das nossas vacas nunca foi muito calórica. Qual é, então, a grande novidade?

Itaú e Bradesco engordaram lucro recorde no primeiro semestre de 2015. Sim, recorde. Na crise. Talvez esta seja a novidade: as vacas gordas nunca comeram tanto.

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13 Oct 13:42

Estatuto da família?

Nestes dias, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou (por 17 votos a cinco) o Projeto de Lei n. 6.583/2013, do deputado Anderson Ferreira (PR-PE).

Esse projeto pretende instituir um Estatuto da Família, ou seja, uma série de normas e disposições pelas quais a "entidade familiar" teria direitos próprios e seria alvo de políticas públicas para ser apoiada e valorizada.

Mesmo se for aprovada no plenário, a iniciativa será provavelmente decretada inconstitucional, porque, desde seu art. 2, ela define a família como "o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher", o que exclui milhares de famílias constituídas de outra forma e, por exemplo, contraria o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal.

O projeto pede que a família tenha "direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária". Eu achava que esses fossem direitos do cidadão, ou seja, do indivíduo –quer ele viva em família, sozinho, com amigos ou com seu cachorro e seu gato, tanto faz.

O projeto também pretende instituir, no ensino fundamental, uma disciplina que se chamaria "educação para família". Espero que a disciplina seja optativa e que os pais possam exigir que seja substituída por uma "educação para o celibato", por exemplo.

O projeto institui um Dia Nacional de Valorização da Família (21 de outubro), que seja celebrado nas escolas. Opa, mais um feriado.

Não falta a ideia de "promover a realização de estudos relativos à família" –os quais, obviamente, já existem em grande quantidade e, em geral, sugerem mais cautela quanto a essa instituição.

Claro que não sou "contra a família": até agora, ninguém conseguiu substituí-la na sua função (desesperada e impossível) de criar filhos. Mas, de lá a fazer o elogio da família como instituição, o passo é longo e estranho. Aliás, os únicos que poderiam mesmo elogiar a família são os psicoterapeutas, os psiquiatras, os psicólogos e os psicanalistas, pois o ofício deles é popular e indispensável graças às sequelas neuróticas que a família sempre deixa nos que ela cria.

Os defensores tradicionais da família são os Estados totalitários e muitas religiões instituídas. Um dos maiores defensores da família, por exemplo, foi o Estado fascista italiano, que criou um imposto sobre o celibato, recolhido pela Obra Nacional da Maternidade e Infância, a qual distribuía subsídios às famílias numerosas, organizava casamentos em massa etc.

A defesa da família pelos totalitarismos e pelas religiões instituídas é ligada à ideia de que a família seja um bom instrumento de transmissão das crenças. Os católicos a defenderiam por esperar que a "família cristã" crie filhos cristãos, assim como a família fascista criaria filhos fascistas.

Trata-se de uma ilusão. A família não é um bom instrumento de reprodução das ideias ou dos comportamentos sociais: muito mais que adesão, ela produz rebeldia dos filhos (este é seu maior sucesso, aliás: o de encorajar revolta e, portanto, uma certa liberdade).

A família, dizem alguns, é um valor cristão. Isso é bizarro: ela é um valor, sim, mas no Antigo Testamento (o quinto mandamento pede para honrar o pai e a mãe), que funda a religião de uma coletividade (o povo eleito). Essa religião não é a religião do indivíduo inventada pelo cristianismo.

Para o cristianismo, não há coletividade que importe mais do que a decisão íntima e singular do indivíduo. Nos Evangelhos, seguir Cristo é um ato do indivíduo livre, contra a família.

"E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor de meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna" (Mateus 19:29).

"Se alguém vier a mim, e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo" (Lucas 14:26).

"Indo adiante, viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão. Eles estavam num barco com seu pai, Zebedeu, preparando as suas redes. Jesus os chamou, e eles, deixando imediatamente seu pai e o barco, o seguiram" (Mateus 4:21 e 4:22).

Em suma, os defensores da família 1) esperam a reprodução social, mas recolherão rebeldia, 2) vão contra a liberdade do indivíduo, que é o maior legado cristão.

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13 Oct 12:51

Photo



11 Oct 18:37

by It’s the Tie

08 Oct 14:46

Trânsito

ivan

Crônica para aparecer nos próximos vestibulares...

"E agora, trânsito! Alan Zucchini, é com você!". "Alô, Ludmila, trânsito complicado hoje na capital, seis e catorze da tarde, tamos aí com mais de 500 km de engarrafamento. Vamos sobrevoando agora a região da avenida Paulista, onde um grupo de 300 manifestantes protesta contra a última chacina, aí, do fim de semana, que matou 15 pessoas em Jandira. As três faixas sentido doutor Arnaldo completamente fechadas". "Eita ferro, todo dia, agora, hein, Alan? É chacina, é professor, é sem-teto, é sem isso, sem aquilo! Gente, quer protestar? Legal, mas precisa parar o trânsito? Faz corrente no Facebook! Grupo de zapzap!". "Haha! É isso mesmo, Ludmila". "Pelamor! Que mais, Alan?". "Zona leste: pra quem pega a Radial o trânsito também vai embaçado, aí, no sentido bairro, com uma pista interditada por causa de um acidente envolvendo uma betoneira e um motoboy. Parece que o motoboy, infelizmente, veio a falecer". "Infelizmente. E continua na pista, o corpo, Alan?". "Pela informação que a gente tem aqui, continua sim, Ludmila, tá esperando a chegada da perícia pra liberar." "Gente, vê se pode uma coisa dessa? Todo dia morre motoboy em São Paulo! Todo dia! E não tem como agilizar essa perícia? Não tem condição, cada moto que cai, travar a cidade inteira!". "Pois é." "Que mais, Alan? Só notícia ruim, hoje?". "Não tá fácil, não, Ludmila. A marginal Pinheiros tá bloqueada na altura da ponte estaiada por causa de uma situação com reféns num ônibus escolar, parece que tem um homem ameaçando explodir uma bomba dentro do ônibus." "Tragédia! Situação com refém na ponte estaiada, na hora do rush, quer dizer, pega a Bandeirantes, Berrini, Roberto Marinho, trava geral ali! Vamos torcer pra não morrer ninguém, senão, amanhã já viu, lá vai todo mundo fechar a Paulista de novo!". "Vamos torcer. Agora, o trânsito tá ruim mesmo é no Morumbi, Ludmila. Um incêndio em 200 barracos na favela de Paraisópolis tá praticamente fechando a Giovanni Gronchi, parece que os moradores da comunidade tão inclusive invadindo as pistas, fugindo do fogo, tá um caos aquilo ali." "Que absurdo! Um perigo pros motoristas, isso, imagina, atropelar alguém? Perigo até, aí, de assalto, arrastão, cadê a polícia, nessas horas, Alan?". "A tropa de choque já chegou, Ludmila, tão usando gás lacrimogêneo e bala de borracha pra direcionar o pessoal de volta pra comunidade." "E o fogo?!". "Tranquilo, o fogo não chega na pista, é só nos barracos mesmo, sem perigo pros motoristas". "Ainda bem. Bom trabalho da nossa polícia, olha aí, todo mundo critica tanto, nessas horas a gente tem que aplaudir. Mais alguma coisa, Alan?". "Opa, tá chegando aqui uma última notícia: parece que um cachorrinho foi atropelado na pista expressa da marginal Tietê, perto ali do Cebolão." "Ai, Alan, que horror! É grave?". "Ainda não tenho a inf.... Ah, tem sim, parece que é uma cadelinha, uma cadelinha da raça pug, tá, o nome dela é Valkíria e, no caso, ela se encontra desacordada, enquanto vários motoristas, ali, prestam os primeiros socorros". "Alô, prefeito, cadê o Samu? Cadê o Águia, governador? Ninguém faz nada?! Só orando, mesmo, Alan, vamos orar, vamos ter fé em Deus, que Deus vai ajudar a Val a sair dessa!". "Amém, Ludmila!". "Amém!".

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