Hoje é dia de fantasia, hobbitses!
Não dá para falar sobre os gêneros especulativos sem passar pelas origens da fantasia. Como comentamos na semana passada, a ficção científica e a fantasia são considerados gêneros irmãos, pois compartilham várias semelhanças em suas raízes. Mas são as diferenças entre os dois – que também são bastante abundantes – que os tornam gêneros tão únicos e relativamente fáceis de identificar.
Em um de seus estudos mais famosos sobre a ficção científica, Darko Suvin, importante estudioso do fantástico e polêmico por excelência, disse que a fantasia é um gênero “descerebrado”. Enquanto a ficção científica, para Suvin, estimula o senso crítico e a inteligência de seus leitores, a fantasia seria um gênero mais simplório, orquestrado por regras aleatórias e que pouco contribuem para o pensamento. Suvin não se fazia de rogado ao dizer que os elementos mágicos da fantasia eram bobos, sem profundidade e entregues de bandeja para o leitor, que é mais deslumbrado do que realmente impactado pelo gênero.
Sem cérebro? Ãh… pera….
A repercussão das ideias de Suvin foi enorme e, naturalmente, levaram muitos acadêmicos (e fãs) a defender a fantasia como um gênero rico e instigante. Recentemente, Suvin publicou um novo artigo, revendo seus conceitos e admitindo que a fantasia podia ser um gênero “cognitivo”, como ele acredita que seja a ficção científica, desde que bem escrita. Já é um avanço.
Assim como pode ser delicado definir o ponto de partida da ficção científica, a fantasia também tem um passado extenso, cheio de detalhes e passível de discussão. Contudo, há algo que nos ajuda nessa tarefa: traçando as origens do pensamento da magia na história da humanidade, conseguimos encontrar os primeiros passos da fantasia também. É muito importante notar que, nos tempos em que a magia era encarada como um ritual, é complicado dizer que ela se entendia da mesma forma que a fantasia é apresentada hoje. As palavras mágicas e os feitiços vinham de uma necessidade do homem de tentar controlar o mundo à volta dele; estavam muito mais próximos das práticas religiosas do que da ficção.
Zalakabula, mexe com a bula, bibidi babidi bu
Ao longo da história, definimos diferentes tipos de função e importância para a magia. Vieram os mitos e lendas antigas, que explicavam como o mundo funcionava por meio de histórias de deuses, monstros mitológicos, bruxas e dragões. Com a ascensão do pensamento racional e científico, essas histórias, que tinham grande função social entre famílias e comunidades, passaram a ocupar cada vez menos espaço. A magia foi, lentamente, se tornando fofoca de velhas comadres supersticiosas, que não acreditavam no conhecimento científico e tampouco eram acolhidas por ele.
É nesse cenário onde irão se desenvolver os contos de fada na Europa. Até o século XVI, era comum que essas histórias, juntamente com o folclore, fossem compartilhadas na comunidade como uma forma não apenas de entreter, mas também de instruir e até assustar; como muitos sabem, os contos de fadas originais não tinham nada de esfregões dançarinos e ratos costureiros que temos hoje. Essas histórias falavam sobre violência doméstica, crimes e muitos deles tinham pesada carga feminista, mas boa parte desses elementos não sobreviveu às transformações que os contos de fada sofreram nos séculos XVII e XVIII. Na França Perrault foi um dos primeiros a reescrever os contos com a preocupação de que fossem histórias com morais que coincidissem com seu tempo; também queria que fossem histórias educativas para crianças, de preferência emolduradas em belos livros de capa dura. Outros autores seguiram nesta linha, inclusive os Irmãos Grimm, que viviam em tempos difíceis para a Alemanha e tinham declarada vontade de publicar histórias que resgatassem o espírito germânico.
“Wilhelm, já pensou se nossos contos fossem reais?” ‘Sim, Jacob. Daria um filme bem ruim.”
É interessante observar que a palavra “fantasia”, ao longo dos séculos, respeita este caminho feito pelo pensamento mágico. Até o século XVI, estar “fantasiando” era praticamente um sinônimo de estar doente do cérebro, delirando. Nessa época, outra expressão para definir os enfermos era “ser levado pela fada”, que seria a responsável pela lentidão dos gestos e o pensamento do convalescente. Por volta dos séculos XVII e XVIII, quando a magia foi colocada na literatura infantil, com os contos de fadas, a palavra “fantasia” passou a fazer referência àquilo que era do imaginário, como lendas e contos fantásticos. Essa palavra só foi ganhar mais um significado no início do século XX, que mudaria para sempre nossa concepção de fantasia.
Foi Sigmund Freud, em 1919, quem utilizou a expressão “fantasia” para explicar aquilo que fazemos quando imaginamos Scarlett Johannson de biquíni ou Daniel Craig andando em câmera lenta. A fantasia sexual – viu como a gente tá falando de Freud? – não tem tanto a ver com o gênero fantástico, mas serviu para aproximar o termo do nosso entendimento cotidiano. Hoje, compreendemos que a fantasia não se refere apenas aos mitos e lendas, mas a todas as composições que nosso imaginário permitir. Ainda que a magia tenha muito a ver com a fantasia, é possível escrever uma história em que a forma da narrativa pode trazer mais para a obra do que a magia de fato. É o caso de Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin, por exemplo. Martin acredita que ser um autor econômico em magia dá mais verdade ao texto. Em uma frase célebre, Martin disse que o importante é “manter a magia mágica”, e não utilizá-la em abundância.
“Esse dragão está me dizendo que minha história é super factível”
A fantasia só começou a andar com suas próprias pernas quando se livrou dos contos de fada. Isso não foi um rompimento simples, mas quando aconteceu, gerou uma das obras mais emblemáticas da história da literatura. Sim, estamos falando de Alice no País das Maravilhas!
Lewis Carroll pode ser considerado, sem dificuldade, o pai da fantasia moderna. Existem alguns motivos que nos levam a pensar assim, juntamente com diversos estudiosos do gênero. Para começar, Carroll conseguiu publicar duas obras que, juntas, subverteram a literatura infanto-juvenil da época, dando-lhe caráter universal e um tipo muito especial de humor. Também conseguiu quebrar as barreiras dos contos de fada e criar uma personagem principal cheia de personalidade, exploradora de um mundo mágico do qual ela não conhece as regras. Alice é uma das grandes heroínas da fantasia clássica e há um grande trunfo que ela seja uma criança, pois Carroll entende profundamente da mecânica da imaginação infantil. Alice transita entre mundos fazendo perguntas e, principalmente, exigindo respostas que só fazem sentido naquela lógica particular. Esse é uma grande característica da fantasia, em sua essência.
Grande heroína da fantasia. Pois é.
A partir daí, o gênero se desenvolveu bastante pelo viés infanto-juvenil. Um outro exemplo clássico é Peter Pan, de J. M. Barrie, outro estudioso da mente infantil. Barrie, assim como Carroll, ousou em escrever aventuras para crianças que continham crianças como protagonistas, mas isso é uma pequena parte de sua obra. Muito mais interessante é perceber a criação da Terra do Nunca, um país que só existe quando é imaginado, e sobrevive – assim como tudo no universo de Peter – a partir de uma regra simples: querer acreditar. É assim que Peter revive Sininho, é assim que Wendy e seus irmãos conseguem voar, e é assim que os Meninos Perdidos conseguem encontrar a terra mágica: acreditando.
Quem viria fazer a grande ruptura da fantasia para torná-la um gênero adulto, como muitos podem imaginar, é J. R. R. Tolkien – que por sinal, nunca gostou da ideia de considerar Alice no País das Maravilhas uma obra de fantasia. Tolkien acreditava que a jornada de Alice era puramente imaginária (ainda que haja muita discussão sobre isso), enquanto o fantástico exige deslocamento rumo a uma nova terra ou realidade. Em seu artigo Sobre Histórias de Fadas (On Fairy-Stories), Tolkien não apenas comenta este novo gênero que está se desenvolvendo como também contribui grandemente para o estudo da literatura ao falar do Caldeirão de Histórias (Cauldron of Story no original), onde mitos, lendas, contos de fadas e todas as histórias já inventadas pelo homem coexistem, misturam-se e trocam sabores, trazendo riqueza a elementos e símbolos da cultura mundial.
E por enquanto é isso, pessoal! Até a semana que vem.