Assumo à partida um julgamento arrogante e snobe: para mim há Coimbra. E depois existem as outras universidades, portuguesas e estrangeiras. Coimbra há só uma, Coimbra é só uma. Nenhuma outra consegue imprimir-se nos corações e nas almas dos seus estudantes da mesma forma. Nenhuma outra consegue fazer-se eterna nas almas, nas vidas, nas consciências como a nossa Coimbra. Digo-o eu e dizem-no os milhares de estudantes de todas as nacionalidades que por lá passam e que, em uníssono, realçam o seu carácter único e absolutamente singular.
Uma das mais antigas do mundo (o grupo de universidades europeias mais antigas ostenta até o seu nome, tendo feito parte das primeiras quinze), enraizando-se na tradição de quase nove séculos do Mosteiro de Santa Cruz (primeiro grande centro de alta cultura da Monarquia Portuguesa), órgão capital da cultura portuguesa durante séculos, centro maior do Renascimento Europeu com a criação do primeiro pólo universitário do mundo, pelos seus bancos passaram alguns dos maiores vultos da história de Portugal e do espaço imperial e lusófono português.
Mas se os velhos e honrados pergaminhos a podiam tornar anquilosada e decrépita, tem sabido empreender o caminho para continuar a ser a schola de referência que sempre foi desde o nascimento no reinado de D. Dinis, como o atestam os vários prémios de investigação que regularmente recebe, os lugares de referência que ocupa nas mais prestigiadas listas de classificações das melhores universidades do mundo (apesar da anglo-saxonite das mesmas), as suas infra-estruturas ao nível das melhores do mundo, e até a recente classificação como Património da Humanidade.
Esta incide não apenas no seu património material (os edifícios, as bibliotecas, os monumentos, os museus, os vários espaços onde se tem desenvolvido), mas também – e sobretudo – no seu património imaterial, a saber: por um lado a sua importância fundamental e central, o seu valor excepcional na formação das elites lusófonas, na formação cultural e científica, na promoção e enriquecimento da língua e da cultura lusófonas ao longo dos seus mais de sete séculos de história; por outro lado a dimensão imaterial do seu património vivencial, isto é, as várias tradições académicas, estudantis, docentes ou institucionais (há-as dos três tipos), passando pelo traje académico, pelas Repúblicas estudantis, pela Queima das Fitas e Latada, pelos Rasganços, pela Canção de Coimbra, e… pela Praxe.
A tão discutida, vilipendiada e odiada praxe, a coimbrã, é Património da Humanidade decretado e declarado pela UNESCO! Eis o que é admirável, tendo em conta o nível da discussão a que se chegou nos últimos meses, a propósito de um acidente com estudantes universitários na praia do Meco, o qual, segundo alguns dos opinadores de serviço, teria ocorrido numa situação de “praxe”. Ora, importa saber em primeiro lugar do que falamos quando falamos de praxe, e nada melhor do que a coimbrã, a original, para percebermos os equívocos e os enganos nos quais nos têm querido cegar, chegando a fazer paragonas sensacionalistas – a propósito de um outro acidente mortal com estudantes em Braga – do género “Praxe volta a matar” quando a praxe, a dura e sed praxis, nada tem a ver com o assunto.
A praxe académica coimbrã é um conjunto de tradições (comportamentais, culturais, festivas, artísticas, etc) no espaço universitário – académico, portanto – mais ou menos antigas, nas quais os estudantes da Universidade de Coimbra (e dos Institutos e diversas escolas a ela associados para esse fim) são convidados a participar pelo simples facto de ingressarem no ensino superior em Coimbra. Tudo o resto, todas as restantes práticas, originam daqui, são imitações e/ou reinvenções desta fonte. Nuns sítios (Lisboa e Porto) reclamando uma tradição comum ou pelo menos partilhada, noutros sítios reinventando a tradição em novas práticas (de Braga aos Açores a escolha é múltipla), e no particular caso eborense reclamando a velha tradição da Universidade de Évora, velha campeã da Reforma Católica liderada pela Companhia de Jesus, barbaramente encerrada pelo Marquês de Pombal, mas cujas tradições souberam manter-se vivas na vivência do Liceu. O resto, do vetusto uso de capa e batina em alguns dos liceus da Metrópole e do Ultramar, às mais recentes “praxes” em universidades particulares, são imitações, são referências à velha tradição coimbrã, sinais evidentes e indiscutíveis do prestígio da sua marca e da razão da sua classificação patrimonial: foram os seus modelos que regeram a imagem d’o universitário pelo país, foram as suas tradições que inspiraram a invenção de práticas que proporcionassem o mesmo status a quem frequentasse outras instituições.
Ao contrário do que é veiculado pela imprensa do politicamente correcto dominante, o conjunto de tradições da praxe académica não constitui um “rito inicial”, um ritual de entrada no espaço universitário coimbrão. Em primeiro lugar porque, sendo embora dominante, não é obrigatório: é absolutamente voluntário. Ninguém é obrigado a trajar-se, ninguém é obrigado a participar nas festividades, ninguém é obrigado a cantar ou a ouvir a canção coimbrã, ninguém é obrigado a rasgar-se (eu não o fiz por achar que era uma tradição, a do rasgar do traje no momento da formatura simbolizando o fim das obrigações académicas e do exílio das terras natais, à qual não me poderia vincular por não partilhar desse sentimento de alegria pelo fim da aventura universitária e obviamente ninguém nem nada me obrigou ou obriga a fazê-lo). A praxe é quanto muito, e completamente ao contrário do que se ouve, um espaço de inteira e absoluta liberdade. Liberdade conquanto tem direitos e deveres, como toda a liberdade que não é nem nunca foi anarquia, inteiramente claros e regulados pelo Código da Praxe. Liberdade porque permite o crescimento pessoal dentro das suas práticas. Liberdade porque ensina a respeitar para ser respeitado. Liberdade porque permite a reinvenção de uma história, fazendo-nos parte comum da mesma, parte partilhada da mesma, ensinando-nos antes de mais a cidadania na sua forma mais clássica.
Não é um “ritual de iniciação”, em segundo lugar, pela própria história, pela própria origem das suas tradições, muitas delas associadas, isso sim, ao final do ano, do estudo, do ciclo, etc. Isso é patente nas origens da Queima das Fitas (o fim do percurso e a queima das fitas que fechavam as pastas académicas novecentistas), nas origens da Latada (o fim do período de estudo e de exames celebrado com latada nas ruas), e porque a praxe rege toda a vivência universitária desde antes da universidade até ao depois. O próprio uso do traje académico é bastante restrito nos momentos iniciais da caminhada académica, dispondo de regras bastante apertadas quanto ao uso e aos momentos do uso. Traje esse, a capa e batina, que é a evolução do velho traje clerical que era imposto aos estudantes da universidade pelo próprio Estatuto da mesma. Porquê? Por dois motivos fundamentais: por um lado advinha do uso generalizado pela comunidade desse tipo de vestimenta pelo ensino pré-universitário ser todo religioso, e como tal, trajando já “à padre”; por outro lado por um motivo muito mais prático: o uso da capa e batina era obrigatório para que se pudessem identificar facilmente os estudantes, diferenciando-os dos habitantes da cidade, os futricas na gíria estudantil. Isto porque, desde a sua origem e até ao século XIX, a Universidade tinha foro próprio, leis próprias, logo administrava a sua própria justiça dispondo de uma guarda (os Archeiros) e de um Cárcere privados – dessa forma, qualquer estudante apanhado a cometer um crime ficava imediatamente sobre a alçada da Universidade e não da lei comum, coisa que os privilegiava e livrava da justiça dos povos, muito menos elegante do que a universitária… Não tem nada a ver, portanto, com uma farda igualitária para não haver distinção de classes, como já ouvi dizer por aí e continua a ser reproduzido amiúde nos círculos dominantes que só vêem o mundo pela lente marxista: era sim um símbolo diferenciador, singularizador, logo exactamente o contrário. E ainda bem!
Este conjunto de tradições e práticas, este reduto restante do foro privado antigo, foi alvo de evolução e sedimentações várias até chegar ao que temos hoje e que é único e característico da comunidade académica coimbrã, seja ou não estudantil. Os professores também têm tradições, práticas e usos próprios, dos quais a borla e o capelo e o quarto de hora académico são apenas a face mais visível, sendo o cortejo e tradições associadas aos Doutoramentos uma das suas faces mais requintadas e das mais ricas tradições portuguesas, que fascinam todos os que a elas assistem, principalmente os estrangeiros, permitindo por exemplo que o filósofo francês Jacques Derrida, aquando do seu Doutoramento Honoris Causa em 2004, tenha dito que era o “mais belo Doutoramento em que tinha participado”. E foram muitos!
São as diversas tradições, sejam elas comportamentais (o pontapé na raposa, o traje e as regras para o seu uso adequado nas várias situações e locais de referência, as normas para cada grau da praxe e no qual todos, sem excepção, têm obrigações específicas), festivas (Queima das Fitas, Latada, Baile de Gala, Chá Dançante, Garraiada), musicais e artísticas (serenatas, saraus académicos, a Canção de Coimbra, o Cortejo da Queima, as Plaquetes, os cartazes), históricas (a Tomada da Bastilha e o seu Cortejo dos Archotes, a Queima do Grelo, o Roubo do Nabo, os toques matutinos e vespertinos da Cabra, os Rasganços, as Trupes) religiosas (a Benção das Pastas, as Missas de Acção de Graças) que, todas juntas, formam aquilo a que podemos chamar genérica e sinteticamente, a Praxe. Ou, se quisermos, a cultura académica coimbrã que tanta fama e prestígio lhe dão no mundo.
Não deixa de ser interessante e curioso verificar como tanto esforço se faz na internacionalização do ensino superior português (chegando ao cúmulo e ridículo, próprio dos povos humilhados, colonizados e/ou aculturados de ministrar aulas e cursos inteiros em inglês), como tanto esforço se faz na promoção do programa Erasmus, e tão pouco se presta atenção a uma das coisas que mais nos singulariza e nos torna alternativa no panorama universitário europo-mundial. Antes da invenção do Programa Erasmus já as tradições da praxe coimbrã permitiam a troca e partilha de experiências e de culturas nos espaços das suas vivências. Há pouco procurei contar por alto o número de nacionalidades que conheci nos vários eventos académicos – nos quais participei e participarei, usando do meu estatuto de Antigo Aluno e de Veterano, sempre que puder, com zelo e orgulho! – e confesso que me lembrei de quase duas dezenas de nacionalidades, de culturas de gente com quem estive, com quem celebrei Coimbra, com quem vivi experiências, gente tão diversa quanto diverso pode ser o mundo entre a Alemanha e Timor-Leste (aliás, as poucas fotografias que tenho do meu Cortejo de Quartanista foram tiradas por um colega/amigo brasileiro-alemão que escolheu Coimbra como destino de Erasmus precisamente por causa das suas diversas tradições, da sua praxe).
Porque se abre um qualquer jornal, se vê um qualquer noticiário, e se ouvem libelos sem contraditório contra a praxe, como se estivéssemos a falar da manutenção da pena de morte ou da escravatura? Por um lado porque a esquerda que domina o nosso espaço público sempre conviveu mal com a Liberdade, nomeadamente com tudo o que não controle e não possa administrar e definir via Estado. Tudo o que é tradição soa-lhe sempre a resistência aos novos amanhãs que cantam, à normalização burocrática, socializante e estatista que quer impôr a toda a sociedade. Por outro lado porque olha o mundo pela deformação das lentes marxistas. Para ela tudo é luta de classes, em todo o lado populam oprimidos e opressores, todas as relações de diferença, de horizontalidade, são “indignas”, “castradoras”, “exploradoras”, “humilhantes”, etc. Incapaz de perceber o que está em causa na praxe, usa dos códigos das ciências socias que domina ferreamente, para ver “rituais de iniciação”, “rituais da puberdade”, “violência escolar”, “rituais de grupo”, enfim, um sem número de disparates maiores ou menores, de rótulos aplicados sem olhar para o fenómeno, tudo para conseguir o seu objectivo latente para usar a terminologia freudiana: acabar com tudo isso.
Só acabando com essas tradições conseguirão ir acabando com o que vai resistindo da cultura e da tradição portuguesa. Na sua visão de cosmopolitismo de pacotilha, de internacionalismo sem horizonte, as sociedades devem tender para a uniformização, abandonando tudo o que constitui diferenças, particularidades, singularidades, resistências, fronteiras, margens. Não é por acaso que as instituições que buscam a acreditação como escolas internacionais se vejam obrigadas à adopção do inglês como língua franca, acabando com uma das mais-valias que o Erasmus proporcionava aos seus beneficiários: o contacto e a aprendizagem obrigatória de culturas diferentes, de formas diferentes de cultura, de organização de pensamento, logo, de línguas. Neste mundo asséptico e assaz desagradável, em vez da diferenciação para a qual tradicionalmente as comunidades, as culturas e a própria natureza evoluíram, teremos o triunfo banal da igualdade alçada como valor absoluto. Uma igualdade internacional, com uma única língua, uma única ordem jurídica, um único pensamento, uma única ideologia dominante, proporcionando assim um controlo fácil e pacífico de quem mandar no sistema. Orwell e Kafka, na ficção, são alguns dos que nos avisaram para os perigos de um mundo assim, um mundo onde domina um pensamento do sistema puro, do sistema desencarnado, desenraizado, dominado por um poder distante, supra-humano, sem rosto.
Nessa normalização, a praxe, por ser portuguesa, por ser singular, por ser singularmente portuguesa, é apenas um dos muitos alvos a abater nesse esbater de fronteiras que tem como último desígnio a cidadania europeia, primeiro, e mundial, depois. Caber-nos-á a nós, nós que não tememos a tradição, nós que a recebemos e herdamos, concebendo-a como o solo fértil no qual colhemos nutrientes espirituais para o futuro, resistir a tudo isto, combater este pensamento que se instala insidiosamente nas nossas vidas, enchendo-as de falsas pressuposições e de conceitos velhos e gastos que em nada ajudam a construir o futuro melhor que ambicionamos. E começando por mais e melhor praxe.
Nota: não sou cego nem alheio aos “excessos” e “exageros” nas praxes. Sei que há casos em que acontecem, mas na maior parte das vezes nem entendo como é que os ditos humilhados, as ditas vítimas, aceitaram continuar na praxe malgrado não concordarem com o que lhes era proposto – a liberdade também se faz dizendo não, e o não serem capazes de o fazer levanta-me uma série de outras questões. Mas esses abusos advêm, muitos deles, das praxes i) não serem pensadas como uma tradição, não nascerem de uma tradição como em Coimbra, uma tradição da qual fazemos parte, que herdamos e que devemos transmitir aos outros, mas serem vistas como uma obrigação, uma prática de purgatório para os que chegam de novo, uma prática identitária do “ensino superior”, coisa herdada do meio militar e sobretudo, tendo em conta o que vejo, da nefasta influência americana vinda em particular pelos filmes de universitários, transformando as nossas instituições em Harvard’s wannabe, como se fossem inferiores ou produzissem pior ciência por não terem práticas semelhantes ii) dos meios escolares terem deixado de ser meios onde o respeito pelos outros é ensinado verdadeiramente, assistindo nós à ausência total de autoridade do professor e do Director no campo disciplinar, criando gerações de gente sem um mínimo de regras e de respeito pelas mais básicas regras de civilidade iii) não serem aplicadas as sanções internas das instituições, e nos casos em que se justifique – que são raríssimos – a legislação criminal em vigor. Não tenhamos, no entanto, dúvidas quanto a uma coisa: enquanto continuarmos a formar pessoas sem regras, sem contacto com a autoridade, com a obrigação de cumprir regras e acatar sanções, enquanto continuarmos a caracterizar a autoridade – mesmo a pedagógica – dos superiores como ilegítima, enquanto continuarmos a lidar com a juventude com as teorias do eduquês, da planta que cresce sozinha, da criatura que descobre o saber (e a educação) por vontade própria, teremos a situação a piorar, quer do lado dos “caloiros”, quer do lado dos “praxistas”, porque ambos serão cada vez mais incapazes de perceber os finos limites do entendimento humano. Mas esse é um problema que teremos de enfrentar sem rodeios e de forma muito séria.