O ano é 1970 e os Beatles acabam de se despedir do mundo com o álbum Let It Be. A banda formada pelos garotos de Liverpool influenciou uma geração de jovens que, através da lisergia, amor livre e pacifismo, pretendia romper com os valores de seus parentes, tutores e governantes. Quando falamos sobre Beatles, é interessante apontar que a banda transcendeu seu status, ganhando uma espécie de aura mítica em torno do seu legado, com muitas histórias e até mesmo lendas, desde a declaração de John Lennon, em 1966, de que os Beatles eram “mais famosos que Jesus“, passando por retiros espirituais na Índia e até mesmo uma sinistra teoria da conspiração: na verdade, Paul McCartney teria morrido e sido substituído por um sósia. Essa piração começou em 1966, após Paul McCartney sofrer um acidente de carro sem grandes sequelas, o boato ganhou força após os Beatles presenciarem dificuldades para apresentações e seu empresário decidiu interromper por tempo indeterminados apresentações ao vivo da banda.
De acordo com os teóricos, o acidente que teria matado Paul o deixou desfigurado. Temendo repercussões do episódio, a gravadora Capital Records promoveu um apagão na mídia, substituindo o Beatle morto por Willian Campbell, um dublê que participou das filmagens de “A Hard Day’s Night” e “Help!“. A história vai mais além, citando que John Lennon, revoltado com todo o silêncio e manipulação em torno da morte de seu colega, resolveu atiçar os fãs da banda espalhando “pistas” em diversas capas e músicas. Outros dizem que Lennon quis pregar uma espécie de peça com o público, comentando de forma deliberada sobre o boato da morte de Paul. Toda essa história gerou inúmeros artigos de jornais, documentários e até mesmo filmes.
Um mês após o lançamento de Let It Be, chegaria às lojas de quadrinhos dos EUA a 222ª edição de Batman, com autoria de Frank Williams e Irv Novick. A capa desenhada por Neil Adams retratava quatro figuras parecidas com os Beatles em seu fardamento Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band saindo de uma cova. Nela, Batman dizia: “one of them is dead…but which one?” e Robin, seu sidekick, completava: “the clue is in the album cover!“, uma clara referência à teoria que as pistas da morte de McCartney estariam escondidas nas músicas e álbuns dos Beatles, como Abbey Road e Sgt. Pepper’s.
A decisão de publicar uma revista do Batman inspirada em uma lenda urbana envolvendo os Beatles veio do famoso editor Julius Schwartz, pretendendo reaproximar o público adolescente da revista do Batman, que sofreu bastante nas mãos da Comics Book Authority, tendo seu conteúdo infantilizado. Ao contrário de diversas HQs americanas, a retração dos Beatles nas páginas de Batman #222 não foi autorizada. Então, devido a questões judiciais, a dupla criativa de Batman #222 resolveu alterar nomes. Na história, entitulada Dead…Till Proven Alive!, os Beatles são chamados de The Oliver Twists e o cantor Saul Cartwright é a contraparte fictícia de Paul McCartney.
A revista de apenas dezesseis páginas começa com um jovem Dick Grayson na universidade, escutando com seus amigos o último single dos Oliver Twists. De forma similar à sua contraparte do mundo real, os Oliver Twists estariam cercados por um rumor que seu vocalista Saul Cartwright teria morrido em um acidente de avião e sido substituído por um dublê e que pistas sobre o fato estariam escondidas em músicas da banda. Intrigado com o rumor, Dick Grayson e seus amigos resolvem tocar o vinil da banda ao contrário, com a expectativa de encontrar informações escondidas sobre a situação de Cartwright. Quando o DJ da rádio anuncia que os Oliver Twists visitariam Gotham City, Dick Grayson consegue persuadir Bruce Wayne a hospedar a banda em sua mansão. Bruce Wayne concorda com Dick Grayson que os rumores sobre a banda precisam ser investigados e, através de suas conexões empresariais com a Eden Records, a gravadora da banda, entra em contato com os Oliver Twists, convidando-os a se hospedarem na sua Mansão durante a estadia do grupo em Gotham.
Certo tempo depois, a banda chega, numa cena que é uma verdadeira joia escondida na história dos quadrinhos. Saul e seus colegas Glennan (John Lennon), Benji (Ringo Starr) e Hal (George Harrison) chegam na Mansão Wayne trajando um fardamento que lembra aquele que o Beatles usou em Sgt. Pepper’s. É nessa parte que o desenhista Irv Novick brilha, retratando a verossimilhança entre as bandas. Assim que os Oliver Twists se hospedam, a dupla dinâmica começa a investigação, tentando sucessivas vezes adquirir uma amostra da voz de Saul. Em outra sequência marcante, Bruce Wayne convence a banda a cantar “Parabéns Pra Você” para o mordomo Alfred. Quando a dupla finalmente consegue alguma prova material, Dick Grayson é golpeado na cabeça e quase desmaia, sendo assim incapaz de identificar seu agressor. Batman e Robin então utilizam os laboratórios e percebem que existe uma incongruência na voz de Saul que eles gravaram e as músicas da banda.
Com os telefones da Mansão Wayne grampeados, Bruce descobre que os Oliver Twists farão uma gravação em um estúdio local. Através de seus alter-egos, Batman e Robin conseguem invadir o estúdio apenas para serem emboscados por quatro capangas armados. A dupla dinâmica então resolve confrontar Saul sobre o boato de sua morte. Após uma intensa discussão entre a dupla dinâmica e a banda inglesa, Glennan (John Lennon) saca uma arma e revela que nocauteou Robin com a intenção de esconder o segredo de Saul. Em frente ao perigo, Batman – com a ajuda de um Saul arrependido – conseguem desarmar Glennan. Cansado de farsas e mistérios, Saul Cartwright resolve revelar o mistério para a dupla dinâmica.
Eis que Schwartz, Williams e Novick apresentam uma versão pouco ortodoxa para o mistério por trás da suposta morte de Paul McCartney. Em Dead…Till Proven Alive! Saul Cartwright revela que, ao contrário dos boatos, ele é o único membro sobrevivente dos Oliver Twists. Seus companheiros de banda Glennan, Benji e Hal morreram em um acidente de avião após retornarem de um retiro espiritual no Himalaia. Preocupado com a reação dos fãs e com o futuro da banda, Saul ocultou a morte de seus colegas, contratando três sósias que receberam cirurgias plásticas e treinamento para ocupar as posições na banda. Saul Cartwright confessa que ele próprio inventou o boato sobre a sua morte, com a intenção de afastar os holofotes e suspeitas acerca dos sósias que contratou. O problema é que o sósia de Glennan ficou obcecado demais com o segredo, sendo capaz de tomar atitudes extremas para protege-lo.
O final é cafona como qualquer história em quadrinhos da década de 70, ingênuo e cheio de lições de moral. Batman e Robin argumentam que o mundo precisa saber a verdade e que, se os fãs forem fieis a Saul Cartwright, eles compreenderão a situação. Robin ainda frisa que o término dos Oliver Twists é uma oportunidade para Saul trabalhar uma nova banda e um novo som. Um tempo passa e Dick Grayson está no show do “Phoenix Trio”, a nova banda de Saul Cartwright, composta por ele, Hal e Benji. Não apenas a dupla dinâmica dos quadrinhos resolveu sua versão por trás do mistério da suposta morte de Paul McCartney, como também provaram serem tão devastadoras quanto a Yoko Ono, levando ao término abrupto e prematuro da maior banda de rock do planeta.
Após descrever extensivamente a trama, sinto na obrigação de amarrar algumas pontas soltas. Para os fãs de Beatles, a HQ é recheada de referências entre a banda de Liverpool e os não-tão-fictícios-assim Oliver Twist, explorando diversas passagens do grupo. Para começar, temos o próprio nome da banda, uma referência à obra homônima de Charles Dickens. Embora a HQ não trate diretamente o boato da morte de Paul McCartney, a capa desenhada por Neil Adams aborda os pontos mais famosos dessa teoria. No encarte do LP segurado por Robin, que imita o Sgt. Pepper’s, Saul Cartwright se encontra de costas, uma alusão que ele seria o impostor da banda, outro ponto seria que, similar à foto com Lennon, Paul e cia., Saul se encontra “acima” de seus colegas de banda, como se estivesse “ascendendo”. Ainda na capa se encontra a referência clássica ao Abbey Road, apesar de ser retratada de outro ponto de vista. Nela os quatro integrantes da banda andam em linha reta, e os pés descalços de Paul McCartney é uma pista sobre sua suposta morte. Além disso, diversos outros fatos sobre a banda são citados ao longo da HQ. A Faixa que Dick Grayson/Robin escuta com seus colegas de universidade é uma alusão a música Revolution #9, o “Pink Submarine” também é citado, a viagem dos Oliver Twists ao Himalaia é uma menção ao período que a banda passou ao lado do guru misítico Maharishi, na Índia.
Com certeza não é a história mais emocionante do homem-morcego, mas é interessante ver como a DC Comics resolveu conquistar fãs dando sua versão sobre esse mistério, uma jogada que eu considero ousada, mesmo que muito gratuita. Para agravar ainda mais o mistério, Paul McCartney lançou em 2007 o álbum Memory Almost Full, que continha uma faixa escondida intitulada “222″, o mesmo numero da edição do Batman discutida nesse post. Seria essa apenas mais uma coincidência ou mais um caso de apofenia para os fãs e teóricos surtarem? O mistério continua.