É engraçado como a música, geralmente, está conectada à região de onde provem. Assim como sotaques, hábitos, tradições, culinária, muitas vezes é possível identificar a origem de uma banda apenas pela sua sonoridade. Às vezes, essa marca regional é tão forte, que acaba dando nome ao próprio estilo musical, como o
Southern Rock (ou rock sulista) de
Allman Brother,
Lynyrd Skynyrd e
Creedence Clearwater Revival, ou o
Rock Gaúcho, aqui no Brasil.
A cidade de Nova York, nos Estados Unidos, é muitas vezes apontada como o grande centro cosmopolita do mundo. E, não à toa, suas bandas costumam trazer esse lado, digamos, mais “descolado” em sua bagagem: de
Velvet Underground a
Ramones; de
Blondie a
Vampire Weekend; de
New York Dolls a
Beastie Boys; de
Talking Heads a
Rapture, a sensação ao se ouvir esses grupos é a de abrirmos uma porta para o mundo, de estarmos penetrando num caldeirão multicultural, mesmo que isso signifique estar enclausurado em uma selva de pedra.
Além do perfil antenado, o rock novaiorquino também é responsável por gerar uma das escolas mais interessantes em termos instrumentais: a das guitarras entrelaçadas e nada convencionais, que, diante de tantas referências, ousam fugir à herança clássica e pura do
Blues. Nesse aspecto, três bandas de gerações diferentes representam de forma brilhante essa característica:
Television, Sonic Youth e
The Strokes. Funcionando num esquema quase de árvore genealógica, elas se calcam na produção de seus antepassados, sempre prestando reverência ao patriarca da vanguarda novaiorquina: o
Velvet Underground, banda que vestia roupas pretas e falava de heroína em pleno florescer do colorido movimento hippie; que vendeu poucos discos em sua época, mas veio a influenciar várias gerações posteriores.
Dessa herança do
Velvet Underground somada às vanguardas do jazz (
Be Bop, Fusion), surgiram as guitarras do
Television, em meados da década de 1970. Tive a oportunidade de assistir a uma apresentação deles no
Tim Festival, em 2005, e posso dizer que foi um dos melhores shows da minha vida. É impressionante como as guitarras de
Tom Verlaine, com timbres quase limpos, casam com os sons mais saturados do doidão
Richard Lloyd, formando uma espécie de balé de riffs e solos de guitarra, no qual mal se delimita o fim da frase de um e o início da do outro. Acredito que, como eu, muitos tenham dificuldade de, só de ouvido, saber quem é
Lloyd e
Verlaine dentro das canções do
Television, tamanha a interação dos guitarristas. E a tal “renúncia do blues” faz com que, ao se assistir às apresentações da banda, vejamos os dedos dos dois guitarristas (principalmente,
Verlaine) deslizando pelos braço da guitarra por caminhos não muito tradicionais, numa jam session que parece residir num lugar entre o rock e o jazz. Realmente, para um estudante de guitarra, o show do
Television vale quase como uma aula do mestrado.
A dupla de guitarristas da banda oitentista
Sonic Youth,
Thurston Moore e
Lee Ranaldo, parece ter estudado com afinco as lições dos mestres do
Television, aprofundando ainda mais a questão do experimentalismo, com toques de música dodecafônica e
John Cage. E se a onda do
Television eram as jams e as escalas inusitadas, o
Sonic Youth preferiu investir nas afinações esquisitas, nas longas e climáticas partes instrumentais e na extrapolação dos limites do próprio braço da guitarra. E, novamente, o entrelace das frases cria uma enorme dificuldade — no bom sentido — de identificação de quem é um ou outro guitarrista nas músicas do Sonic Youth. Um ponto interessante da sonoridade das guitarras da banda tem a ver com o que um grande amigo declarou a respeito do
Lee Ranaldo (e que parece servir para o
Thurston Moore também): a impressão que dá é que ele pega as escalas musicais naquelas revistas de violão e guitarra e só toca as notas onde o pontinho NÃO está marcado. Ou seja, é dissonância em sua forma mais pura, empunhada por uma das mais criativas e entrosadas dupla de guitarristas do rock.
Por fim, mas não menos importante, temos a rapaziada (esse termo é meio escro***) do
The Strokes. Celebrado no começo do milênio como a grande sensação do rock moderno, o grupo de
John Casablancas deixou de ser novidade e passou a ser alvo de algumas críticas no decorrer de sua carreira.
Hypes à parte, trata-se de um bandão, formado por uma das mais afiadas dupla de guitarristas que já vi. Também tive a oportunidade de assisti-los no
Tim Festival de 2005 e fiquei de cara com as guitarras extremamente bem timbradas, arranjadas e executadas. Na linhagem das guitarras novaiorquinas, o
Strokes deixa o experimentalismo do
Sonic Youth e as jams do
Television para trás, investindo numa fórmula mais pop, de músicas de curta duração. De qualquer forma, a dupla de guitarrista do
Strokes está longe de ser tradicional: tanto na forma de tocar seca e de riffs certeiros de
Albert Hammond Jr. quanto nas frases mais longas virtuosamente empunhadas por
Nick Valensi estão presentes referências ao lado jazzy do
Television e à própria visão mais “aberta” de pensar da escola de rock novaiorquina.
Três grandes bandas de rock formadas por fenomenais duplas de guitarristas. O que
Television,
Sonic Youth e
The Strokes nos provam é que, a despeito de toda a tradição que cerca o já cinqüentão rock’n’roll, as guitarras ainda podem surpreender e extrapolar limites, quando pensadas de forma inteligente e criativa. Neste caso, o cosmopolitismo novaiorquino ajudou a escrever um dos capítulos mais sofisticados e elegantes dessa história.