Marcus Preto
Patricia Araujo/2013
Antes que ele mesmo pudesse imaginar, Arnaldo Antunes estava em estúdio registrando uma leva de canções que havia composto durante as férias. O plano inicial era lançar um álbum apenas em 2014. Mas o entusiasmo com a produção recente era tão intenso que resolveu registrá-la nos intervalos da turnê que então corria o Brasil.
Gravou as novas canções às prestações, conforme arrumava um tempo no cronograma dos shows. E, invertendo o método tradicional, optou por também mostrá-las ao público aos pouquinhos. Aproveitou as facilidades da internet para divulgar, uma por mês, quatro das músicas que integrariam o álbum. Disco, como foi batizado o trabalho completo (são 15 faixas), chega, enfim, às lojas. Traz canções inéditas escritas por Arnaldo Antunes com seus colaboradores de sempre, como Nando Reis e Marisa Monte, e com parceiros recentes, como Luê, Felipe Cordeiro, Hyldon, Céu e Caetano Veloso. Interessante o esquema de ir lançando as faixas avulsas, criando já com a resposta do público. Mas havia sempre o risco: e se o interesse do público pelo álbum se esvaziasse durante o processo? “Inicialmente, eu também tive esse medo”, admite Arnaldo. “Tanto que ia lançar seis singles, mas pensei nessa esvaziada e diminuí para quatro. As pessoas podiam dispersar. Espero que não tenham se dispersado, mas se despertado para o disco.”
CULT – Em entrevista recente, perguntei a Luiz Tatit como os compositores da nova geração da música brasileira estavam lidando com a poesia concreta. Ele respondeu que, embora Caetano Veloso tenha sido um dos primeiros a casar concretismo e canção popular, você é a referência forte para esses jovens. Porque seu método de lidar com o concretismo na música resulta em algo realmente pop, que pode ser consumido por todo mundo. Esse tema ainda está entre os seus interesses?
Arnaldo Antunes – É um deles. Foi a poesia concreta que me nutriu a querer fazer poesia. Posso dizer que é uma das coisas que me incentivaram muito na adolescência. Mas acho que essa relação com a poesia concreta já está incorporada e disseminada em várias fontes da música popular brasileira. É um dado que já se integrou à cultura contemporânea. Não existe mais aquele trauma que havia nos anos 1950.
Que trauma?
Diziam que aquilo não tinha emoção, que não era lírico, essa bobagem toda. Tinha muita resistência contra o lado mais formalista, mais construtivista da poesia concreta. Mas a minha geração já recebeu isso com muito mais naturalidade, vendo a potência daquela poesia, sem ter vivido o problema que ela causou para os criadores.
Desse seu novo álbum, pode-se dizer que a canção “Muito muito pouco” tem essa raiz concretista?
Não sei se dá para chamar uma letra como “Muito muito pouco” de poesia concreta. O que teria mais a ver com poesia concreta, por exemplo, é a canção “O quê”, do tempo dos Titãs: essa, sim, tem um aspecto construtivista, criei inclusive uma versão visual para ela, circular. É um poema visual muito devedor à poesia concreta. “Muito muito pouco” é uma letra enumerativa, mas que tem um lado ácido, também de crítica social e comportamental. É um comentário sobre desperdício e escassez, sobre miséria e fartura. Isso em várias áreas. Existe aí uma série de fontes além da coisa mais formalista.
Você falou em crítica social. Músicas como “Querem mandar” e “Dizem (Quem me dera)” poderiam ter sido inspiradas pelas manifestações políticas dos últimos tempos. Foram?
Há nelas uma afinidade com o que a gente viu nas manifestações, mas as canções foram feitas nas férias, antes de tudo aquilo acontecer nas ruas. “Dizem” tem ao mesmo tempo uma coisa esperançosa e desesperançada. Não sei como explicar isso. Mas é certo que o discurso que ela traz faz mais sentido agora, por conta do que aconteceu e está acontecendo.
Você começa a canção com o verso “O mundo está bem melhor/ do que há cem anos atrás, dizem”. O mundo está bem melhor hoje do que há dez anos?
Não sei dizer. Melhor em que sentido? É claro que morre muito menos gente, mas temos problemas enormes. A gente nunca enfrentou uma crise ambiental nessas proporções. E ainda estamos vendo guerras. Sou esperançoso em relação ao mundo, mas a música não pode ser. A música joga a interrogação.
Patricia Araujo/2013
“Sentido”, parceria sua com Nando Reis, é antiga?
Sim. Mas não é da época dos Titãs. Eu já tinha saído da banda. Assim que o Marcelo Fromer morreu, encontrei o Nando e entreguei essa letra para ele. Tinha escrito pensando na morte do Marcelo. Sentamos uma noite em um hotel e terminamos. Os Titãs estavam preparando um disco, o Nando ainda estava na banda, mas eles não se interessaram pela música. Agora, aproveitei para resgatá-la. Como também resgatei “Fogo”, que fiz com o João Donato há mais de dez anos.
A versão que você fez para “Mamma”, do Gilberto Gil, é dessa mesma época?
Por aí. Adoro esse disco de Londres, do Gil [Gilberto Gil, de 1971, gravado no exílio do cantor, em que todas as letras foram escritas em inglês]. Ouvi muito na minha adolescência, ouço até hoje. Pensei que ninguém tinha feito nenhuma versão dessas coisas para o português. Tentei essa e saiu. Não cheguei nem a mostrar ao Gil na época em que a fiz, mas quando o Lenine estava produzindo o segundo disco da Maria Rita, mandei essa versão, achando que faria sentido ela cantar isso para a Elis. Uma afirmação de autonomia diante da presença da Elis. Mas acho que ela não se identificou. Acabou não gravando.
Seu álbum se chama Disco, a arte da capa e da contracapa remetem aos formatos do LP e ao CD. Isso recoloca em pauta a questão: “fazer ou não fazer um álbum?”. Ou: “alguém ainda compra discos?”. Tatá Aeroplano, um dos nomes importantes da nova geração paulista, foi direto ao ponto: “Lembra das bandas que, no começo dos anos 2000, decidiram que só lançariam música pela internet? Alguma delas sobreviveu?”.
É verdade [rindo]. As bandas não sobreviveram e os discos delas não existiram. Para o artista, é uma liberdade enorme não ter que ter um conjunto de canções pra poder lançar. Poder soltar uma, duas, três, quatro – seja na internet, seja em um single. Como fizeram Tom Zé e Roberto Carlos. É uma liberdade a mais. Ao mesmo tempo, tenho pena de quem só consome faixas avulsas. É uma perda conceitual e também ritualística. Ir ali, colocar o álbum para tocar – mesmo que seja em formato mp3 – é muito diferente de ouvir só no shuffle. Acredito que um formato não vai substituir o outro. Eles convivem. Até o vinil está de volta. Temos mais alternativas hoje, e isso é legal.
Nando Reis diz que faz músicas só para elas se transformarem em álbuns, que pensa as canções em conjunto desde o início. E você? Como começou a criação de Disco, por exemplo?
Comecei a compor coisas muito díspares. Eu tinha um corpo de canções que queria fazer com o [pianista] Daniel Jobim e o [violonista] Cesar Mendes, principalmente. Depois, chegou o [baixista] Dadi. Mas, para essas canções, eu pensava em uma praia de sonoridade bem cool. Ao mesmo tempo, compus uns rocks pesados, como “Ah, mas assim vai ser difícil” e “Sentido”. Eles eram um contraponto àquela primeira leva de canções, quase o oposto delas. Pensei então fazer um CD com o conceito de lado A e lado B, como no vinil: um muito cool e outro bem pesado. E chamar o disco de Bipolar.
Bipolar? A ideia é boa…
Era a ideia do ano passado. Depois, nas férias, fiz uma viagem para Ilha Grande, quando encontrei Marisa Monte e compus as músicas que acabariam se tornando o eixo desse trabalho. São aquelas três parcerias com Marisa e Dadi e mais algumas que fiz sozinho, como “Muito muito pouco”, “Ah, mas assim vai ser difícil” e “Oxalá chegar”. Todas essas têm uma cara mais pop, o que não se encaixava em nenhum lado do Bipolar. E agora? Chamar o disco de Tripolar? E a ideia dos dois polos ficou pra trás. Terminei fazendo um disco mais misturado e menos conceitual. Assim, coube minha parceria com a Céu e o Hyldon – uma delas, já que temos umas seis ou sete músicas juntos. E também coube a que fiz com o Caetano…
Você está se referindo a “Morro, amor”? O título dessa sua letra apresenta essas duas palavras, “morro” e “amor”, uma ao lado da outra. Isso tem muito a ver com a fase atual do Caetano Veloso, que anda cantando que está muito triste, que o lugar mais frio do Rio é o quarto dele…
Tem a ver, sim. Ainda que a música que ele fez para a minha letra tenha resultado em uma sonoridade muito diferente da que o Caetano vem usando nos últimos discos. Ele fez uma canção. Essa parceria foi feita para o filme Romance, do Guel Arraes. Mas a música não entrou. Chegaram a gravar, mas desistiram. A [cantora] Mariana de Moraes gravou, mas o disco dela não saiu ainda. Acabei gravando e é capaz de sair antes da gravação dela. Mas não é um problema existirem duas gravações da mesma música ao mesmo tempo.
E mais parcerias se abrem na faixa “Ela é tarja preta”, escrita a dez mãos com Betão Aguiar, que toca na sua banda, e com os paraenses Luê, Manoel Cordeiro e Felipe Cordeiro. O Pará entrou, merecidamente, no radar da música pop brasileira – como havia acontecido antes com a cena de Recife e a de São Paulo. Que fatores você acha que fazem uma região, de repente, se destacar?
Eu não gosto de pensar que o momento agora é da “bola da vez”, que o que veio antes “já era”. Pernambuco continua nos dando coisas geniais – o Zé Cafofinho, o China, por exemplo. Aquilo não para, tem novas gerações muito boas depois de Mundo Livre S/A e Nação Zumbi. A mídia elege coisas, mas eu sempre relutei com essa ideia de “a onda agora é isso”. O fato de ter escrito essa música com eles foi casual. Eu tinha participado do disco da Luê produzido pelo Betão Aguiar, que toca comigo. E ele trouxe o Felipe aqui em casa. Fizemos duas músicas, que vão estar no disco do Felipe. Mas gostei tanto de “Ela é tarja preta” que resolvi também gravar. Mas não tem esse olhar de “vou gravar uma tecnobrega porque é a onda”. Fica parecendo um pouco assim…
Claro que não. Eu conheço o seu trabalho. Pergunto de uma maneira menos agressiva do que isso. Assim: tem horas que o Brasil, seja pela influência da imprensa ou por algum fator imponderável, começa a olhar para um lugar que sempre esteve ali, mas nunca havia sido notado com a devida atenção.
Que bom que aquilo tem visibilidade agora, porque estão acontecendo coisas interessantes por lá já faz tempo. Mas, ao mesmo tempo, sempre foi assim: sempre tem uma coisa hegemônica. Foi assim com a descoberta da lambada, com o axé music, com a música dos anos 1980. Acho isso chato. A coisa hegemônica é chata. Não tem a ver com quem está preocupado em fazer arte. Quem está surfando atrás de uma onda sempre vai chegar depois, porque quando chega, aquela onda passou e já é outra. Então, sempre relutei com esse tipo de ideia, pelo menos como direção do meu trabalho. Eu me interesso mais pelas exceções do que pela onda do momento.
Entendo. Mas independentemente da onda, a cena paraense foi finalmente reconhecida. E isso é muito bom.
Tomara que essas coisas tenham o reconhecimento devido. A programação das rádios hoje em dia está muito distante do que eu gosto, musicalmente. Esse papel hoje passou para a internet. A internet é onde eu vou procurar as músicas das novas gerações que me interessam. Mas não está tudo pronto ali. As pessoas precisam procurar, cavar. Então, minha torcida é para que as coisas cheguem ao público. Isso, em parte, está acontecendo. Mas as rádios deveriam se abrir mais para isso.
Marcus Preto é jornalista