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21 Mar 13:29

Me apaixonar não estava nos meus planos

by papacapim

Mês passado fez seis anos que cheguei na Palestina de mala e cuia, decidida a morar na terra santa. Ainda lembro perfeitamente desse dia. Na verdade lembro perfeitamente, com minúcia de detalhes, dos dias que antecederam minha chegada também. E Jerusalém está no coração desses eventos. Já contei pra vocês como fui parar na Palestina? Então procurem um assento confortável e uma caneca de chá que lá vem história.

A primeira vez que coloquei os pés em Jerusalém foi no final de 2007. Fazia alguns anos que a vontade de visitar a Palestina me acompanhava. Culpa de um episódio aparentemente banal. Um dia eu estava no aeroporto, indo de Paris pra Budapeste, e percebi que não tinha trazido nada pra ler durante a viagem. Passei pelo quiosque de livros e encontrei uma revista de antropologia que tinha dedicado uma edição inteira à Palestina. História, política, conflito, muro, ocupação, tudo o que eu sempre quis saber sobre o assunto estava ali. Até hoje penso onde estaria e como seria minha vida se eu não tivesse encontrado aquela revista. Tudo que eu não teria vivido, todas as pessoas que eu não teria conhecido… Nunca se sabe qual pequeno detalhe vai mudar a trajetória da sua existência.

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A leitura daquela revista me deixou em estado de choque durante meses. Eu perdi noites e mais noites de sono pensando nos palestinos, na ocupação israelense e em como a ignorância nos faz ser cúmplices de tantas injustiças mundo afora. E uma vontade irresistível de visitar a Palestina se instalou no meu peito.

Anos depois estava eu mais uma vez no aeroporto em Paris, dessa vez indo passar três semanas na Palestina e em Israel. Estava indo fazer um trabalho voluntário de duas semanas em Belém, depois passaria uma semana visitando algumas cidades israelenses, porque eu queria conhecer os dois lados do muro. Na fila do check in conversei com um senhor palestino de Nazaré. Ele contou que estava indo visitar a família, eu expliquei que estava indo fazer um trabalho voluntário na Palestina. O senhor arregalou os olhos e disse: “Minha filha, não diga isso no aeroporto, senão você terá problemas com a imigração israelense”. Eu tinha lido depoimentos de pessoas que tinham tido dificuldades pra sair do aeroporto porque disseram que iam visitar a Palestina, mas tinha decidido não mentir. Culpa da minha mãe.

Quando eu era pequena minha mãe contou uma história que aconteceu ali mesmo, na terra santa. Ela disse que depois do nascimento de Jesus, Maria, José e o filho recém nascido precisaram fugir de Belém porque o rei malvado (Herodes) tinha ordenado que todos os meninos da região fossem assassinados. Ele estava com medo de perder o trono pro bebê que tinha acabado de nascer. Maria escondeu Jesus num pote (seco!) e subiram os três na carroça rumo à Nazaré. No caminho uma patrulha romana parou a carroça e perguntou à Maria: “O que tem dentro desse pote?”. Maria sabia que se o filho fosse descoberto seria imediatamente assassinado, então perguntou a Deus o que fazer. Deus falou no ouvido dela: “Passe com a verdade.” Então Maria obedeceu e disse: “Dentro do pote tem um menino”. Os soldados romanos caíram na risada e disseram: “Se tivesse um menino aí você nunca nos contaria, pois sabe muito bem que estamos matando todos os meninos da região.” E eles passaram sem problemas.

Eu sabia perfeitamente que minha mãe contava aquilo pra que eu nunca mentisse pra ela, mas não sei por que cargas d’água me senti toda iluminada naquele dia e decidi que já que eu estava indo pra Belém, eu ia passar com a verdade no aeroporto. Acontece que a moça da imigração israelense não reagiu como os soldados romanos da história da minha mãe. Quando eu disse que estava indo visitar Belém ela fechou a cara e declarou: ‘Eu não quero você em Israel’. E antes que eu pudesse responder que depois de ter sido acolhida com tanta hostilidade eu é que não queria mais e que por favor me deixasse passar que eu trataria de ficar só na Palestina, policiais tomaram meu passaporte e me levaram pra uma salinha onde fui interrogada por várias pessoas, durante duas horas. Entre uma pergunta e outra (perguntaram o nome do meu pai mais de vinte vezes e como eles nunca pareciam convencidos, eu também comecei a duvidar. Será que era esse mesmo o nome do meu pai?) minha mente ia de ‘nem cheguei e já vão me deportar?’ pra ‘mas que crime eu cometi, gente?’ pra ‘vão me deportar agora’ pra ‘mas eu não fiz nada de errado’ etc. Parece que o nome disso é tortura psicológica.

Essa foi a primeira de muitas experiências traumáticas naquele aeroporto (eu ainda não sabia, mas aquela estava longe de ser a pior). Hoje eu sei que tem situações onde passar com a verdade NÃO é uma boa ideia e se o próprio Jesus tentasse cruzar o checkpoint de Belém hoje ele seria impedido (um palestino barbudo disposto a morrer como mártir?! HÁ!). Fui procurar minha mala e qual não foi a minha surpresa quando vi o senhor palestino sentadinho do lado da esteira. Ele tinha ficado me esperando aquele tempo todo. Quando me viu falou: “Minha filha, fiquei com medo de não te deixarem passar. Já estava perdendo a esperança.” Ele me mostrou onde pegar a van que me levaria pra Jerusalém e me deu o telefone da família em Nazaré, caso eu precisasse de alguma coisa. Nas horas mais difíceis da minha vida sempre apareceu uma alma boa pra oferecer reconforto.

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Desci da van uma hora depois, em frente ao portão de Damasco, uma das entradas da cidade antiga de Jerusalém. A combinação avião + experiência traumática no aeroporto + van tinha me deixado tonta, mas quando olhei pra muralha que cerca a cidade antiga e me vi no meio da agitação que é essa parte da cidade meu coração disparou. Dois segundos depois eu estava apaixonada pela cidade. Eu tinha ido parar ali pra descobrir outra realidade e pra mostrar solidariedade a um povo. Me apaixonar não estava nos meus planos.

Três semanas depois, pouco antes de voltar pra Paris, eu sentei naquela muralha e, com a cidade antiga aos meus pés, descobri que a partir daquele momento a vida na França não fazia mais sentido. Jerusalém foi a cidade que me fez ficar na Palestina. Apesar de sempre ter morado em Belém, que fica a poucos quilômetros ao sul, os momentos mais felizes e mais difíceis dos cinco anos que morei lá aconteceram em Jerusalém. Pensei em deixar a Palestina algumas vezes e, coincidentemente (ou não), sempre mudei de ideia em Jerusalém.

Os ativistas estrangeiros que conheci na Palestina escapavam pra Tel Aviv quando queriam férias da loucura que é viver sob ocupação militar. Bares, festas, praia e o clima mais livre e menos religioso da cidade atraem muita gente. Eu nunca gostei de Tel Aviv e quando queria respirar outros ares atravessava o checkpoint de Belém e subia no ônibus que me levava de volta ao portão de Damasco, onde tudo começou. Estranhamente a atmosfera carregada de religião (ou melhor, de religiões, no plural) nunca me oprimiu. Preciso dizer que nunca me aventurei no bairro ultra ortodoxo da cidade e minhas andanças se resumiam à cidade antiga, Salahadim Street e, mais raramente, Jaffa Street (na parte ocidental). A parte ocidental da cidade é, pra mim, menos charmosa, sem falar que ela abriga o Ministério do Interior (onde eu ia renovar o visto todos os anos e onde me ofereceram algumas das piores horas da minha estada na região), por isso eu sentia vibrações negativas sempre que passava pela área. O meu coração estava no caos e na overdose de cores e sabores da cidade antiga.

Lá fiz alguns dos amigos mais queridos que tenho hoje e tive a honra de desfrutar da imensa generosidade deles (o que salvou a minha vida uma vez). Lá eu provei comidas memoráveis, incluindo o melhor hummus do mundo (tem muita controvérsia sobre esse assunto). Lá eu abri meu coração várias vezes e deixei a camada mais profunda do meu ser respirar o ar fresco. As pedras da cidade são sedosas, desgastadas pelo tempo e eu gostava de andar pelas ruas com o braço levemente esticado, acariciando-as com as pontas dos dedos. Jerusalém pra mim é dourada, tem cheiro de terra seca, pedra e alecrim e tem gosto de suco fresco de romã e kayek (o pão típico da cidade, salpicado de gergelim).

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Na Via Dolorosa tem um prédio que funciona como pousada pra peregrinos e onde o teto abriga um terraço. De lá dá pra ver o Santo Sepulcro, a mesquita Al-Aqsa e boa parte da cidade antiga. Fui lá pela primeira vez em 2007, guiada por uma amiga alemã. Voltei inúmeras vezes, sozinha e acompanhada, mas sempre que me deparava com aquela vista meu coração disparava. Exatamente como na primeira vez que coloquei os pés na cidade. E cada vez que eu ia lá me apaixonava novamente por aquele lugar. Apesar de abrigar tanta loucura e injustiças, Jerusalém continua sendo a minha cidade preferida no mundo e ainda penso nela quase todos os dias.

*Veja mais fotos de Jerusalém (incluindo alguns dos lugares que citei nesse texto) e descubra as maravilhas gastronômicas no Guia Vegano da cidade.

20 Jan 16:22

LARGO DA BATATA: DO POPULAR AO ELITIZADO: Entrevista a Amália dos Santos - Gazeta de Pinheiros

by João Sette Whitaker

Publicado em 17/01/2014

Entrevista a Amália dos Santos - Gazeta de Pinheiros (clique aqui para ir ao original)

O debate sobre a “reconversão” do Largo da Batata, em entrevista com o professor João Sette Whitaker Ferreira.


Antes ocupado pelo comércio popular, Largo da Batata muda a cada dia com a chegada do metrô e do mercado imobiliário / Grupo 1 de Jornais

Antes ocupado pelo comércio popular, Largo da Batata muda a cada dia com a chegada do metrô e do mercado imobiliário / Grupo 1 de Jornais

Quem passa hoje pelo Largo da Batata vê uma grande área cortada pelas muitas pistas da Avenida Brigadeiro Faria Lima. Com a aproximação do fim das obras, fica a dúvida sobre o destino da região, que tem uma importante história como espaço de comércio e convívio.

 

Segundo o professor João Sette Whitaker Ferreira da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, esse uso intenso é alvo do mercado imobiliário, que vê no Largo um grande potencial de mudança. A seguir, ele conta mais sobre suas memórias, a relevância e o potencial desse espaço emblemático da cidade.

 

Antigo mercado dos caipiras, anos 1910 / Família Goldschmidt

Antigo mercado dos caipiras, anos 1910 / Família Goldschmidt


Gazeta de Pinheiros – Como era a sua relação com o Largo da Batata antes das obras?


João Whitaker - O Largo da Batata era historicamente um ponto de comércio, conhecido como Mercado Caipira. Dele, surgiu o Mercado de Pinheiros, que recebeu em 1968 um lindo projeto dos arquitetos Eurico Prado Lopes e Luiz Telles, os mesmos que depois fariam o projeto do Centro Cultural São Paulo. O mercado manteve a vocação do lugar, tornando-o um subcentro importante na cidade. Por isso, ele manteve sempre esse caráter popular. Nas redondezas do mercado, uma feira ao ar livre vendia de tudo um pouco.

Era um local cheio de gente, democrático, com confluência de linhas de ônibus e de ruas comerciais, que eu conheci na minha adolescência, quando cheguei ao Brasil, onde nunca havia morado. Era lá que pegava o ônibus para o colégio, e adorava sempre que possível perambular pelas barracas da feira, pelo mercado, pelas lojas. Aquela riqueza cultural e social era, para mim, o retrato do Brasil.

GP - Um dos argumentos centrais para a remodelação do Largo é a “deterioração” do espaço. Como você vê essa avaliação?

JW - A “deterioração” de um espaço urbano é, antes de tudo, um termo ideológico. Ele “força” uma interpretação negativa daquele espaço, que é considerado “deteriorado” para quem tem outros interesses na área. O Brasil é um país que produz cidades segregadas. Essa forma de vida urbana renega a cidade, a rua e toda a riqueza da interação cultural e social que a cidade permite.

Quando a Faria Lima passou a ter suas extremidades sob a mira do mercado imobiliário, com Operações Urbanas, a natureza popular do Largo da Batata, da sua feira e de seu comércio, passou a incomodar os objetivos de valorização. A ideia de “requalificar”, “revitalizar” essa área começou a ser cada vez mais ouvida, apesar da incrível e rica vitalidade que a área já tinha.

GP - Como você julga o concurso, as obras e as projeções para a conclusão da remodelação?

JW - O concurso não podia dar certo do ponto de vista de quem valoriza a cidade democrática e, portanto, o Largo tal qual ele existia. Pois seu edital era drástico em direcionar o projeto urbanístico para uma espécie de “limpeza social”, tirando de lá os resquícios populares. A intenção era “reconverter”, ou seja, deixar o passado popular “condenável” e dar a chance de tornar o Largo digno e de alta classe. O que se queria ali era retirar os ônibus e elitizar a região.


Imóveis vazios na região do Largo da Batata / G1J

Imóveis vazios na região do Largo da Batata / G1J

Embora o projeto tenha elementos interessantes, o concurso não tinha como dar um resultado diferente do que o que se vê agora: um espaço vazio, sem vida, estéril, que aniquilou o dinamismo da área e a transformou em mais uma passagem de carros. As obras intermináveis nem sequer permitem vislumbrar os poucos aspectos positivos, como a grande praça que foi prometida.

GP - Qual é a importância do Largo da Batata, na urbanização e no potencial de convívio?

JW - O Largo da Batata tem uma enorme importância urbanística como espaço de conexão. Mas essa confluência não pode ser pensada apenas para os carros, mas sim para as pessoas, que vão para seus trabalhos ou suas casas. Ele continua sendo um lugar de encontro, de parada. Como uma área de respiro na cidade, tem a função maior do espaço público, que é a confluência, a aglomeração, a manifestação.

GP - No seu blog, você trata, entre outras coisas, das desigualdades da metrópole de São Paulo. Podemos considerar que a má distribuição dos espaços públicos de qualidade é uma das manifestações disso? A remodelação do Largo pode ser considerada um reforço dessa condição?

JW - Sim, na medida em que se eliminou um espaço popular de encontro e de comércio para colocar no lugar outro, em que impera o fluxo de carros, em que há poucas áreas com qualidade de vida, arborização farta, espaços de repouso. Ironicamente, a ciclovia que acompanha toda a Avenida Faria Lima tem justamente ali seu pior trecho: cinza, pouco cuidado, sem árvores, com grades. Quem passa por lá nem percebe o pobre mercado, que continua ali, isolado e pouco valorizado. Não há mais traço da feira e sobrevivem a duras custas alguns renques de sobrados literalmente cortados ao meio pela avenida, uma ou outra loja popular e alguns espaços de samba.

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GP - Nas manifestações do ano passado, ficou evidente que o espaço público amplia as possibilidades de debate e reivindicação. Nesse sentido, como você vê a “tomada” do Largo da Batata, num dos momentos mais importantes daqueles acontecimentos?

JW - Eu vejo que vivemos uma revolução geracional. Quem faz as manifestações de hoje nasceu e cresceu após a ditadura – e até mesmo após a constituinte de 1988. Para esses jovens – sejam eles de classe média ou da periferia, que hoje começa a ter acesso aos estudos universitários –, os parâmetros de compreensão da vida em sociedade mudaram.

Eles indignam-se com a gritante desigualdade dos investimentos públicos, com as políticas “públicas” que só servem aos interesses das elites, com o abandono das periferias, com o favorecimento aos automóveis e o descaso com o transporte público. Começam a ver e usar o espaço público como tal e a transformá-lo no que ele deve ser: o palco verdadeiro das transformações sociais e urbanas. São eles que, de fato, “reconverteram” novamente o Largo da Batata, mesmo que por algumas horas, no que ele sempre foi: um espaço popular.


DESTAQUE:

 “De fato, os bairros não tombados, ocupados por sobradinhos pequenos (…) foram sendo reiteradamente e implacavelmente ‘devorados’ e transfigurados pelo mercado que, (…) sem proteção dos espaços públicos, sem redimensionamento das ruas, sem regulação do Estado (…), vai alinhando prédios cada vez mais altos (e shoppings, dezenas e dezenas de shoppings).”

Trecho extraído do post Cidade do apartheid: reflexões sobre o Plano Diretor de São Paulo, do blogcidades para que(m)?, escrito por João Sette. Confira em: cidadesparaquem.org.


Entrevista: Amália dos Santos,

arquiteta e colaboradora