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20 Mar 18:16

As mulheres de Chico

Arte é aquela coisa né: cada um dá a sua interpretação.

Eu, como redator, tenho um fascínio por Chico Buarque e a forma como ele escreve. Minha namorada, que é uma violinista com ouvido absoluto (sério, ela consegue reconhecer em que nota estão as buzinas dos carros na rua), também o acha um ótimo letrista, mas um péssimo músico.

Chico Buarque causa uma coisa louca nas pessoas. Ao longo dos anos foi-se construindo essa ideia de que “perto dele, todo homem é potencialmente corno”. Que ele entendia a alma feminina, coisa que ele próprio já refutou.

”(…) Eu me considero um grande desconhecedor da alma feminina. Ao contrário do que se fala, virou um lugar-comum por causa das canções e tal… Mas eu sou um sujeito muito curioso exatamente por desconhecer, por querer saber, querer entender e não entender nunca.”Chico Buarque

Durante muito tempo eu fiquei sem entender como músicas tão machistas poderiam representar “a alma feminina”.

Só depois eu fui entender que ele não fala da “alma feminina”, mas a posição que a mulher está na sociedade.

Eu diria que Chico não entende a mulher, mas de como os homens (e a sociedade) as tratam.

Explico:

 

Geni e os detalhes.

O que mais me encanta em Chico, é que uma palavra muda todo o sentido de uma música. Existem várias músicas dentro de uma música dele. Quando ele terminar A Rita dizendo que ela “deixou mudo o violão”, ele quis dizer que ela quebrou o seu violão antes de partir ou que sua partida foi tão triste que ele não conseguiu mais tocar?

Geni e o Zepelim é outro exemplo que gosto muito. A música é sobre uma garota marginalizada e humilhada pela cidadezinha onde vive. Até que, as portas do desastre que vai por a cidade a baixo, Geni é a única que pode salvá-la.

Chico diz:

Acontece que a donzela,
E isso era segredo dela,
Também tinha seus caprichos”

Qual era o segredo dela? Que ela tinha seus caprichos ou que ela ainda era donzela (ou seja, virgem)?

A critica a sociedade está em, mesmo ela sendo prostituta ou virgem, para a cidade não interessava. Se todo mundo achava que ela não valia nada, ela não valia nada (e mesmo assim ela salvou a cidade).

Dito isso, tudo me leva a crer que quando Chico escreve uma música tão machista quanto o sentimento de posse em Sem Compromisso, a repressão em Essa Mulher, a submissão de Com Açúcar Com Afeto, enfim… entendo como um grito silencioso para a quebra desses conceitos, não uma celebração deles.

Quando uma mulher me diz que Chico a entende, eu entendo é que ela diz: é isso que me combraram toda a minha vida. O sentimento de posse, repressão e submissão.

O perigo está em levar ao pé da letra e encarar como normal, bonito e poético.

 

Das mulheres de atenas aos dias atuais.

Minha mãe nasceu em 1951. Aos 18 anos, ela fugiu de casa e passou no primeiro concurso do Banco do Brasil em que mulheres podiam se inscrever. Isso em 1969. Antes disso, havia apenas homens trabalhando como bancários.

Veja bem, não estou falando de minha tataravó. Mas da minha mãe.

A década de 60 foi um marco na luta das mulheres por seus direitos de serem tratadas como pessoas. A revolução sexual, a pílula anticoncepcional e a ideia absurda de uma mulher poder frequentar a universidade (ou trabalhar no banco).

Mulheres de Atenas é uma música escrita em 1976, onde Chico diz para “mirar nas mulheres de Atenas, que vivem pros seus maridos”. Uma ala feminista caiu matando em cima da música. Mas “mirem-se” também é o pedido de “aprendam com o passado para não repetir os erros”.

Hendrik Willem Van Loon disse que “as artes são um barômetro ainda melhor do que está acontecendo em nosso mundo do que o mercado de ações ou os debates no congresso.”. O mesmo Chico que fez Mulheres de Atenas, fez Olhos nos Olhos, no mesmo 1976. A história de uma mulher que dá a volta por cima.

Mas em muitas músicas de Chico, como a própria Olhos nos Olhos, o personagem é uma mulher. O que não quer dizer exatamente que seja uma música sobre mulheres. (aliás, eu acho ótimo que suas músicas ele use um eu-lírico feminino. Já basta na literatura 71% dos protagonistas serem homens)

 

A arte é a prova que a vida não basta.

Que “alma feminina” é essa que Chico expressa?

Eu reconheço em suas músicas duas linhas. Uma em que ele fala do machismo sobre a mulher e a outra em que ele fala de amor.

Sim, as mulheres são mais abertas ao amor, e expressar sentimentos, que os homens. Mas muitas de suas músicas tratam de amor somente. Não de mulheres.

Eu tenho um teste muito simples para saber se uma música é sobre o machismo ou sobre o amor. Inverta a pessoa que canta. Troque a mulher por um homem e, se a música continuar a fazer sentido, ela não está falando da mulher, apesar do eu-lírico ser uma mulher.

Olhos nos Olhos poderia ter uma versão cantada por um homem (mudando generos femininos por masculinos). Anos Dourados e O Meu Amor, também.

Teresinha, não.

Eu, pelo menos, não consigo imaginar uma mulher trazendo um litro de águardente, cheirando a comida do homem, vasculhando as gavetas e chamando de “perdido”.

Ok. É dificil não confundir quando ele fala de amor ou machismo/mulheres pelo fato das narrativas serem femininas. Mas são sentimentos que todos nós sentimos e nos identificamos.

 

Os brutos também amam.

Não é porque as músicas falam de sentimentos que se restringe a uma coisa feminina.

Em Grande Sertão Veredas, a história de Riobaldo e Diadorim é uma das coisas mais tristes que existem.

Diadorim é a filha de um jagunço que foi assassinado e, para vingar seu pai, se disfarça de homem. Riobaldo, o novo chefe do bando do pai de Diadorim, também quer vingá-lo.

Os dois se aproximam e Riobaldo se apaixona por Diadorim, mas, por questões machistas, nunca revela isso a ele (que era ela) em vida.

Apenas quando sabe da morte de Diadorim, ele solta um grito de “meu amor!” que estava engasgado em sua garganta.

Riobaldo era um jagunço - teoricamente, simbolo máximo da masculinidade nordestina - apaixonado por um de seus parceiros, que ele não sabia ser uma mulher.

Talvez, não fosse Riobaldo e Diadorim, poderia se chamar Maria Bonita e Rosária, na qual Rosária fosse um homem disfarçado? Poderia-se dizer que Guimarães Rosa conhece a alma masculina?

Não sei.

Só sei que essa linha tênue que confunde a existência do machismo, com a essência das mulheres como pessoas - que sentem, sofrem e amam - nas músicas de Chico, me dá a entender que, para as mulheres, sofrer com o machismo se tornou algo tão comum quanto amar.

Ou talvez mais…

  

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