Enquanto você lê essa notícia, cerca de 25 mil bois estão em alto mar, realizando uma viagem que começou no Porto de Santos, no litoral de São Paulo, com destino à Turquia.
Além da distância oceânica que ainda devem percorrer, esses bovinos – tidos como propriedades da empresa Minerva Foods, com sede em Barretos, interior de São Paulo – já haviam realizado um trajeto de 14 horas em caminhões apertados e sujos de fezes e urina até o litoral, onde chegaram no dia 26 de janeiro.
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A dimensão do caso levou muitas ONGs que lutam pelos direitos dos animais a iren até a cidade e protestar contra a situação, como foi o caso dos porta-vozes do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, entidade que reúne 136 organizações não-governamentais. Os ativistas conseguiram respaldo da Justiça e ganharam uma liminar que impediu a continuidade da viagem. Porém, dois dias depois da decisão, um novo recurso da Advocacia-Geral da União permitiu que o navio realizasse a viagem.
Nesse meio tempo, os animais estiveram ali, esperando. O cheiro de dejetos e decomposição infestava a cidade inteira, enquanto os ativistas reforçavam o parecer veterinário da Justiça Federal a respeito da inspeção do espaço.
Segundo o documento, à medida que os inspetores desceram os andares do navio, a situação de insalubridade se revelava: “o odor amoniacal nesses andares era extremamente intenso, tornando difícil a respiração. [...] o sistema de ventilação artificial buscava atenuar o efeito do acúmulo de gases e odores, resultado também da decomposição de material orgânico bovino. A poluição sonora (em decibéis) resultante do constante funcionamento dos ventiladores era intenso e claramente inoportuno dado seu elevado grau de ruído".
Quem viu tudo de perto foi a médica veterinária Patrycia Sato, coordenadora de bem estar animal no Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. “Fomos até lá motivados a atrair a atenção da mídia e colocar o assunto em pauta. A maioria dos brasileiros nem sabe que nosso país exporta animais vivos para o abate”, comentou em entrevista à GALILEU. “O Brasil é um dos maiores criadores e exportadores do mundo de gado. O número de bois que são exportados por ano flutua muito porque há muitas variáveis nessa conta”, completa a especialista.
De acordo com dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), compilados pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), as exportações brasileiras de carne bovina tiveram um crescimento de 14% em 2017 em relação ao ano anterior. Esse comércio rendeu cerca de US$ 6,28 bilhões ao mercado nacional.
O que isso tem a ver com você? De fato, esses animais que chegarão ao país euro-asiático não serão a carne que está em seu prato. Porém, é bem provável que o seu alimento seja criado e transportado de maneira semelhante a esses bovinos.
Bem estar animal
Uma das principais pautas do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal é prezar pelo bem estar do gado. “Isso quer dizer que trabalhamos de forma pragmática e visamos a redução de maus tratos. Nós encorajamos a redução do consumo desenfreado de carne, mas acreditamos que buscar uma forma consciente de cuidar desses animais é mais eficiente do que convencer as pessoas a virarem veganas”, explica a médica veterinária Sato.
Contudo, esse esforço da ONG não encontra respaldo em território nacional. Exemplo disso é o caso que ocorreu no Porto de Santos. Segundo a porta-voz, não existe nenhuma regulamentação de caráter obrigatório no país sobre o transporte de animais para o abate. “O Brasil é signatário das recomendações da Organização Mundial de Saúde Animal (conhecida pela sigla OIE), porém, não existe nenhuma obrigatoriedade para segui-las”, comenta Sato.
As diretrizes delimitadas pela OIE são divididas em parâmetros que dizem respeito ao bem estar dos animais, ao abate e ao transporte terrestre e marítimo. Nesse último caso, é necessário promover locais adequados para o embarque dos bichos, ter veterinários o suficiente para avaliar a condição dos animais, manejar corretamente o transporte do gado, garantir alimento e água necessários. Ou seja, tudo que envolve a vida desses animais desde que deixam a fazenda até chegarem ao local de destino.
A União Europeia é exemplo pioneiro disso. Por lá, o abate humanitário é regulamentado e exigido pelo governo em todas as empresas frigoríficas. O bem estar do gado é exigido desde o nascimento até o abate do animal.
Segundo Sato, esse bem estar pode ser explicado em pontos que são reconhecidos mundialmente como as “cinco liberdades”. Os animais devem ser livres de fome e sede; livres de desconforto (o que significa que devem estar em espaços adequados para viver e descansar); livres de dor, doença e injúria (os responsáveis pela criação devem garantir a prevenção de mazelas); livres para expressar o comportamento natural de suas espécies; e, por fim, livres de medo e estresse.
Além do direito pela saúde do gado, o Fórum Animal também trabalha em prol da saúde humana – lutando pela garantia de que a carne consumida seja saudável, sem antibióticos e passível de causar doenças – e pelo meio ambiente. “Não existe atividade comercial mais prejudicial pro meio ambiente do que a pecuária. Desde o uso de água, desmatamento, mal direcionamento de dejetos para a emissão de gases que potencializam o efeito estufa, como o metano, gás carbônico”, exemplifica a médica veterinária.
Atualmente no Brasil, existe apenas um selo que garante o bem-estar dos animais, que é o Certified Humane Brasil. Contudo, enquanto não há legislação federal que obrigue os frigoríficos e empresas de gado a promoverem uma criação e um abate mais sustentável, essa carne criada em condições saudáveis ficará restrita às sociedades mais abastadas intelectual e financeiramente.
“Quando o assunto se torna público, a tendência é que as pessoas sejam empáticas com os animais, mas isso não pode pesar muito no bolso dos consumidores”, completa Sato.
* Com a supervisão de Thiago Tanji.
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