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21 Oct 11:16

“Esse problema não é meu!” (questões conjugais e os sintomas dos filhos)

by Ricardo Lima

Criança problema, aluno preguiçoso, aborrescência.

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Olhar para os sintomas dos filhos como reflexos do que se passa na vida conjugal dos pais é desafiar essas visões tradicionais. A partir das experiências no trabalho clínico com queixas referentes aos problemas de aprendizagem, tive a oportunidade de aprender com meus jovens pacientes que, em muitos casos, eles eram portadores de sintomas oriundos das dinâmicas conjugais dos pais.

Então, comecei a me interessar e investir esforços com os casais, com a visão de promover um melhor entendimento dos processos que envolvem a vida conjugal e seus reflexos no desenvolvimento dos filhos.

Tenho notado que, muitas vezes, as dificuldades manifestadas pelos filhos funcionam como uma cortina de fumaça para os conflitos familiares e conjugais. Isto é, quanto mais o comportamento de um filho se apresenta como problema, a atenção da família se volta para esse foco, fazendo com que os pais/casais não tenham que olhar para as próprias questões mal resolvidas.

É claro que o surgimento de sintomas comportamentais ou educacionais em uma criança não se limita a essa causa, mas vejo que esse fato, ainda desconhecido por muitas famílias, atua como força criadora/mantenedora das dificuldades de aprendizagem.

Quando isso é percebido no consultório, costumo fazer a seguinte pergunta para os pais:

“Como está o casamento de vocês?”

Esse é um momento crucial no trabalho clínico, pois não é raro encontrar cônjuges que há tempos estão insatisfeitos em diversos aspectos do casamento; casais que utilizam a comunicação de forma rasa e burocrática, como ferramenta útil para resolver problemas do dia a dia, mas ineficiente para expor seus sentimentos; parceiros sem intimidade, portanto, sem conhecimento mútuo, entre outras questões.

Outro fenômeno que observo é a maior incidência de mulheres que procuram expor estas situações. Dizem, recorrentemente, que se sentem em conflito entre ter uma vida feliz e dar sentido aos seus desejos (já que os filhos estão crescendo) e ainda ter que suportar as tarefas de mãe-esposa-profissional impecável sem a ajuda e a admiração de seus maridos.

Quando questionados, muitos maridos relatam não entenderem a insatisfação das mulheres, já que elas têm os filhos — segundo eles, “se elas se realizam como mães, não precisam de mais nada na vida” –, uma casa confortável, um homem trabalhador e provedor, entre outros argumentos.

Nesse impasse, a comunicação do casal fica comprometida pela dificuldade de negociar as diferenças entre o que se espera da relação e o que ela realmente pode proporcionar a cada um dos cônjuges.

Não considerar e se aprofundar nessa questão (é isso mesmo… discutir a relação) empobrece um aspecto importante no desenvolvimento humano, do casal e da família: o auto-conhecimento. Sem essa consciência, surgem dificuldades em assumir, aceitar e lidar com as diferenças, fazendo com que, em muitas famílias, isso se torne um assunto, digamos, proibido, veladamente censurado.

Muitos pais/casais com quem converso são inteligentes, bem sucedidos profissionalmente, mas inábeis em lidar com questões emocionais por carecerem de auto-conhecimento. Resultado: o silêncio.

Aqui ocorre o que eu chamo de “não dito”, ou seja, o que existe nos relacionamentos mas fica camuflado, discretamente ignorado. Por exemplo: “sinto que o meu marido não me deseja mais” ou “queria que os meus pais se interessassem mais pelas coisas que eu gosto”.

Ignorar uma questão emocional significa deixá-la operar silenciosa e inconscientemente na própria vida e na família.

Seria como cultivar uma mensagem subliminar do tipo “aprenda, questione e comporte-se apenas dentro daquilo que suportamos, do que damos conta… o que está fora desse alcance, não serve, não pode, deixa pra lá.”

Oras, vivemos em um mundo de diversidades e a aprendizagem passa justamente pela análise crítica das diferentes formas de pensar, sentir, se comportar. Assim, o processo de aprendizagem fica seriamente comprometido pois reduz o aprender a uma série de memorizações de conteúdos para atingir resultados padronizados e análogos às limitações emocionais da família.

Digo questões emocionais pois se referem não somente ao que é avaliado pela educação formal, mas principalmente ao auto-conhecimento.

Nesse contexto, a riqueza interior do ser humano — que tem na diversidade uma de suas melhores qualidades — fica reprimida, censurada, oculta. A auto-estima não se fortalece, pois não há uma construção do amor próprio, mas sim a reprodução do que outro determina ser o amor correto, o afeto permitido.

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O “não dito” funciona como peso morto, ancorando e dificultando o desenvolvimento; a aprendizagem, como fenômeno importante para a constituição de indivíduos (seres únicos, ímpares), não pode ser vivida de forma autônoma e autêntica, explicando as dificuldades de alguns jovens em assimilar, administrar e gerar conhecimentos sozinhos; a criatividade, como manifestação do ‘fazer diferente’, não vale, é censurada, nivelando a vida por baixo. E acaba por emburrecer, desinteressar, entristecer.

Para pedir ajuda, alguém na família tem que denunciar que algo está errado. Infelizmente, tenho constatado que isso ainda fica a cargo dos filhos.








30 Aug 18:32

Os médicos, as galinhas e os cubanos

by Victor Lisboa

1. Desordem no galinheiro

Breve cena da vida privada. Pela manhã, escuto no rádio que chegaram os primeiros médicos estrangeiros. No trabalho, colegas conversam a respeito. Um sugere que é estratégia para dar grana ao Fidel. Penso em replicar que as coisas são mais complexas mas, nesse momento, liga minha mãe.

Chorosa, pergunta se eu poderia ajudar a fazer uma denúncia contra um médico que desmarcou sua consulta por duas vezes e, na terceira, deixou-a esperando duas horas até ser atendida. No sábado, soube de uma menina que, atropelada, faleceu após aguardar três horas por atendimento em um hospital.

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Breve cena da história. Logo após a Primeira Guerra, um naturalista norueguês chamado Thorlief Schjelderup-Ebbe decidiu passar uns tempos na fazenda de seus pais. Ao cuidar do galinheiro, notou que ali havia hierarquia: algumas galinhas comiam primeiro os grãos despejados em um pote; saciadas, abriam espaço àquelas no segundo nível da hierarquia; por fim, quem estava na base ficava com as sobras. Tudo bem ordeiro.

Ele chamou essa estrutura de “ordem de bicadas” (pecking order).

Então Thorlief decidiu fazer um teste. Trouxe uma nova galinha para o galinheiro e ficou observando. Queria ver onde ela se colocaria nessa pirâmide social. Teve uma surpresa: todas as galinhas começaram a brigar entre si na hora da comida.

Ele percebeu que, com a chegada da nova galinha, todas as outras ficaram inseguras e passaram a atacar as demais para confirmar a manutenção de seu status. Afinal, se a nova moradora conquistasse boa posição na hierarquia, empurraria alguma galinha para baixo. E quem seria? Nenhuma delas estava a salvo, e era bom deixar claro às outras que não seria vítima fácil.

Por outro lado, aquelas na base da pirâmide, aproveitando a confusão, tentaram galgar alguns degraus, abrindo caminho com bicadas. As galinhas que estavam no topo sentiram o perigo, e passaram a bicar também.

O resultado é que todas se machucaram. Algumas galinhas ficaram praticamente sem penas.

Thorlief  descobriu que, no mundo das galinhas, há uma divisão entre aristocratas e plebeus. E que um pacífico galinheiro pode ser um campo de batalha, com a chegada de, digamos assim, estrangeiros. Essas conclusões de Thorlief  foram melhor desenvolvidas posteriormente por outros especialistas, auxiliando a compreender o  comportamento de grupos sociais e, até mesmo, de sistemas financeiros.

2. A hierarquia em tempos da geração álcool-gel

Antigamente, uma das atividades mais prestigiadas era a militar. Homens iam à guerra defender seu país com frequência, e lá podiam morrer. Logo, soldados ocupavam o topo da ordem de bicadas: as mocinhas casadoiras suspiravam ao ver desfiles militares.

Elvis soldado, 1958

Elvis soldado, 1958

Hoje em dia, vivemos em uma sociedade pacífica, mas meio bundona. Não se valoriza tanto a combatividade quanto o cuidado maternal. Nada contra ou a favor, são apenas fatos. E, como resultado desses fatos, militares são mal pagos e aqueles que têm o poder de eliminar uma vida cederam lugar, na ordem de bicadas, ao que tentam adiar a morte. Em uma sociedade que idealiza uma pureza total, livre de todos germes, na era da geração álcool gel, nada mais lógico do que médicos possuírem status privilegiado.

E os conselhos de medicina souberam muito bem garantir a manutenção dessa hierarquia. Quer que uma profissão seja valorizada e permaneça no topo da ordem de bicadas de nosso galinheiro? Simples, dificulte ao máximo a abertura de novos cursos e mantenha sob estrito controle o número de profissionais disponíveis no mercado.

Essa é uma política sistemática e reiterada do Conselho Federal de Medicina e demais orgãos de classe. E produz bons resultados: os poucos cursos de medicina são tremendamente concorridos e neles ingressam somente aqueles que podem arcar financeiramente com um bom preparo pré-vestibular e, também, com os custos inerentes à própria faculdade.

As roupas brancas, que deveriam simbolizar assepsia, acabam por ser insígnia de uma curiosa elite contemporânea – afinal, as pessoas simples, quando procuram agradar alguém “do andar de cima”, não se dirigem a elas usando a palavra “doutor”?

3. Sociedade empoleirada

E eis que chegaram os médicos estrangeiros. São a nova galinha de nosso galinheiro. Mesmo que eles desejem (e desejam, acredito) apenas trabalhar em paz, sua mera presença causa alvoroço não apenas entre aqueles que estão no topo da ordem das bicadas, mas nos membros de todos os estratos sociais.

Por mais que sejam bem intencionados (e estão, tenho certeza), sua mera presença desperta velhos fantasmas da sociedade brasileira, e faz com que profundos preconceitos aflorem até a superfície. O pessoal da esquerda e da direita se prepara para a luta. Todos sobem em seus poleiros.

E, para complicar tudo, é com a chegada dos médicos cubanos que a sociedade se dá conta de um detalhe que, até então, passou despercebido: parte desses médicos vindos de Cuba possui a pele parda ou negra.

A vergonhosa verdade é que muita gente no Brasil não está habituada a ver médicos com tal fenótipo. Muita gente está acostumada a ver pessoas com pele parda ou negra exercendo apenas outros tipo de atividades. Foi o que uma jornalista potiguar, agora célebre, revelou em um “inocente” comentário:

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Imaginem: a cereja do bolo da sociedade brasileira, o status de médico, pertencendo a pessoas com a mesma cor de pele daqueles que, infelizmente, há séculos ocupam o andar de baixo da hierarquia social. Isso incomoda muita gente, mesmo quem gosta de pensar em si próprio como alguém sem preconceitos.

É por tal razão que a cena de jovens brancas, com unhas bem feitas e reluzentes anéis, vaiando um homem negro de mais idade, causa uma perturbação que ultrapassa os limites da discussão sobre a saúde no Brasil.

O primeiro médico cubano no Brasil. A primeira estudante negra nos EUA

O primeiro médico cubano no Brasil. A primeira estudante negra nos EUA

Se em apenas um dia já houve toda essa confusão, imaginemos o que está por vir. É possível que esse médicos estrangeiros sejam perseguidos por seus colegas durante o desempenho de suas atividades, e mesmo por aqueles que desempenham serviços auxiliares. É também provável que, nessa briga de galinheiro, todos os preconceitos sociais e ideológicos aflorem para dar um péssimo espetáculo do pior que há em nossa sociedade.

Na balbúrdia que se prenuncia, uma outra teoria poderia nos ajudar a sermos melhores do que galinhas. Mas isso dependeria de uma maturidade que, talvez, não tenhamos ainda enquanto nação.

Segundo a teoria dos jogos de soma não-zero, do matemático John Nash (que inspirou o filme Uma Mente Brilhante), a maior parte das questões sociais são disputas nas quais todos os participantes podem sair beneficiados de uma forma otimizada, sem que nenhum conheça o amargo sabor da derrota. Basta que os membros do jogo percebam a importância da colaboração mútua.

No caso dos médicos estrangeiros, eles chegaram para trabalhar, e isso é um fato tão certo quanto a crise na saúde pública. A vinda de médicos estrangeiros é a solução? Não sei.

Porém, mesmo que não seja, se tornarmos tudo uma briga de galinheiro, se tentarmos resolver a situação montados nos poleiros de partidos, de ideologias políticas e de lutas corporativistas, ao invés de buscarmos a colaboração mútua e o entendimento de que o que interessa é a saúde da população brasileira, todos acabaremos depenados e levados ao fogo como uma boa galinha caipira, servida para alguma raposa oportunista.