Este é um texto diferente do que você está acostumado a ler aqui no blog.
É um texto mais extenso que o normal. Peço um pouco de paciência. Leia com calma, que vale a pena.
É a história de como uma iniciativa bancada com leis de incentivo e aparentemente benéfica à população se revelou um desperdício de dinheiro público e um prejuízo para comerciantes e profissionais locais, além de uma frustração imensa para uma cidade.
Tudo começou em maio de 2012, quando aconteceu em Paraty (RJ) a Virada Digital.
Era um evento de “inclusão digital”, que prometia deixar para a cidade um legado de tecnologia e infraestrutura de Internet e levar conhecimento a comunidades carentes da região.
A Virada Digital foi bancada por isenção fiscal e patrocinada por estatais e grandes empresas do setor de telecomunicações. Teve apoio institucional da prefeitura local, dos governos Federal e do Estado do Rio e patrocínio da Petrobras, Caixa Econômica Federal, Embratel e Cisco.
O evento foi realizado por uma empresa chamada Ninui, de propriedade de Roberto Andrade. Andrade foi um dos responsáveis pela vinda da Campus Party ao Brasil e foi coordenador de Internet da campanha de Dilma Roussef à Presidência, em 2010.
A Ninui conseguiu aprovação de captação de recursos com o Ministério da Cultura (2,3 milhões de reais) e por meio da Lei Estadual do Rio de Janeiro (1,47 milhão de reais). A Petrobras (600 mil reais) e Embratel (150 mil reais) usaram a Lei Estadual do Rio.
Veja um vídeo em que curadores e o organizador falam sobre a expectativa em relação ao evento:
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Durante os três dias do evento, foram realizados debates e palestras sobre cultura digital e instalados pontos de internet de alta velocidade na cidade, para uso gratuito da população.
Entre os debates, houve um com o tema “Paraty Digital – Paraty Século 21”, que contou com Gilberto Gil (que gravou um depoimento em vídeo), especialistas em inclusão digital e com Pablo Capilé, da rede Fora do Eixo, que deixou esse depoimento surpreendente em que revela que Paraty fica no interior:
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Qualquer morador da cidade poderia dar um belo depoimento sobre a moderníssima rede de Internet da região, que não resiste a uma garoa, ou sobre as inúmeras comunidades rurais sem acesso à web, ou ainda sobre a velocidade supersônica da conexão local (no momento em que escrevo, exatos 439,83 kbps).
Mas o evento trouxe esperanças de melhoria aos moradores. Depois da Virada Digital, fomos informados, tudo mudaria.
Em entrevistas e no próprio release da Virada Digital, o organizador prometeu que um cabeamento de fibra ótica de 100 Mb de velocidade, que a Embratel colocaria no evento, ficaria para a cidade.
“Ela (a fibra ótica) veio do mar através de Trindade (…). Esta fibra ótica ficará na cidade após o evento, é compromisso da Embratel, o que representará um salto de qualidade no serviço de internet em Paraty”, afirmou Roberto Andrade ao site Paraty.com, em abril de 2012.
A Embratel, no entanto, não confirma isso. Procurada pela Folha, a empresa afirmou: “A estrutura utilizada na cidade de Paraty-RJ foi projetada especificamente para o evento Virada Digital.” A empresa não informa se planeja explorar comercialmente o cabeamento.
“A Internet aqui na nossa região é tão ruim que até parece aqueles telefones de fio e caixas de fósforos que fazíamos quando crianças”, disse Amaury Barbosa, Secretário de Cultura de Paraty. “Recebemos a promessa do Sr. Roberto Andrade de que receberíamos computadores e a fibra ótica, colocada por ocasião do evento, deixaria um benefício para a cidade.”
Outra reclamação da Prefeitura se refere à promessa de doação de equipamentos de informática. O release da Virada Digital diz: “Todo o aparato tecnológico do evento, como (…) computadores instalados, será doado à cidade e ficará como legado do evento.”
“Estávamos contando com o apoio de uma grande marca de computadores”, disse Andrade. “Fomos avisados na véspera do evento que a marca não participaria (…) Isto nos pegou de surpresa.”
Apesar de ter sido avisado “na véspera”, o evento manteve, em seu release de imprensa, a informação sobre a doação. “Reconheço que deveríamos ter retirado do release o assunto dos computadores”, afirma Andrade. “Foi um erro de comunicação”.
A Virada Digital também deixou dívidas com agências de turismo, pousadas, restaurantes e profissionais da cidade.
Apurei onze casos, com dívidas que vão de 5 mil a 160 mil reais. Tive acesso a contratos, recibos, e-mails e cheques da Ninui que foram usados para pagar fornecedores e, depois, sustados. Até o rapper MV Bill, um dos curadores do evento, tinha dinheiro a receber da Virada Digital.
Uma coordenadora de logística, que recebeu cerca de 2 mil reais para trabalhar no evento, ficou com dívidas de mais de 50 mil reais em pousadas e agências de turismo da cidade. “Fiz as reservas para o evento, que não pagou ninguém. Agora é meu nome que está sujo”, diz a coordenadora, que pediu para não ser identificada.
O escritório da Ninui, empresa que recebeu as verbas via lei de incentivo, foi fechado no fim de setembro.
Mesmo com todos esses problemas, a Virada Digital anuncia outras edições. Segundo o site da Virada, o evento volta a acontecer em 2013 no Rio de Janeiro e em 2014 nas cidades-sede da Copa do Mundo.
É ver para crer.