Shared posts

15 Jun 04:02

A Bahia tem um jeito singular

by ImpedCorp

bruno braz  - lance

“Salvador, capital da Bahia e primeira capital do Brasil, é uma cidade singular. Sua culinária de raízes africanas, sua musicalidade, suas manifestações religiosas que sempre se misturam com o profano, são atrações para turistas nacionais e internacionais”.

Este ufanista parágrafo acima, que mostra como esta hospitaleira urbe é atrativa, é o trecho inicial de apresentação do Grande Hotel da Barra, último emprego de Carlos Alberto Conceição dos Santos Júnior.

Porém, há exatos 10 dias, o hotel, que trata tão bem os visitantes, não tem mais o referido jovem arrumando os quartos dos hóspedes.

-“Sim, ele realmente trabalhou aqui, mas saiu no início do mês”, diz a moça, com a voz tranquila e segura.

Questionada sobre o motivo da demissão, a moça, com a voz tranqüila, segura , e agora quase quase seca, responde com imprecisão: “Não, ele não foi demitido, não. Não aconteceu nada. Ele saiu de modo normal”.

Salvador, realmente, é uma cidade singular. Capital campeã de desemprego – e as pessoas saem de trabalho sem pedir demissão, “de modo normal, sem acontecer nada”. É, definitivamente, uma cidade singular. Trata muito bem os visitantes, porém fraqueja na atenção devotada aos nativos.

No entanto, apesar destas discrepâncias, aqui a praia ainda é de todos. E o baba lá é sagrado. E não seria Carlos Alberto, no fervor hormonal de seus 22 anos, que desta lei da natureza futebolística iria ter isenção. E, nesta quinta-feira, dia 13, o rapaz, morador do Nordeste de Amaralina, acordou disposto. Sim, pra jogar bola na areia fofa da Praia de Amaralina é preciso muita disposição.

Caso morasse em São Paulo, provavelmente ele tivesse sido vítima da infâmia que tomou conta da principal avenida de Pindorama no mesmo dia 13 de junho, quando os meganhas mostravam, uma vez mais, que a farda lhes dá o direito de agir como prepostos de deus.

Mas, Carlos Alberto teve a sorte de nascer na capital baiana, esta cidade singular. E mais. Para ir jogar o baba com os amigos ele nem precisa pegar ônibus. Basta andar pouco mais de 500 metros. Aliás, esta é a mesma distância que separa a casa de seus pais da minha e também da praia. Somos todos aqui abençoados.

Para que vocês tenham uma idéia de nossas glórias, nesta mesma quinta-feira, desembarcaram na cidade exatamente 1.500 homens do Exército, Marinha e Aeronáutica para trabalhar na Copa das Confederações. A função deles, segundo informa a imprensa, “será garantir a segurança de áreas consideradas estratégicas, como subestações de água e energia elétrica. O grupo também poderá atuar em situações de emergência, caso seja identificada alguma necessidade adicional. Para a realização dos serviços, os militares vão contar com armamento e equipamentos específicos para missões de Defesa e Ações de Garantia da Lei e da Ordem, cães-de-guerra, veículos blindados, motocicletas e veículos especializados de engenharia”.

Todo este arsenal é para garantir a segurança dos turistas, que, uma vez mais, ficarão maravilhados com os encantos e magia desta misteriosa província lambuzada de dendê e de exclusão.

Já que entramos nesta seara, então é preciso informar que os excluídos, os nativos, vão ficar sob os cuidados da briosa Polícia Baiana. E o governo deve ter solicitado gente de fora porque parece que os policiais daqui não gostam muito de futebol. Sim, só isso para explicar os motivos de eles terem impedido Carlos Alberto de ir jogar com os amigos na praia de Amaralina, deixando o time da Rua Aurelino Silva incompleto, na manhã desta quinta-feira. Só o ódio ao futebol para explicar aquele covarde tiro na nuca do rapaz, que nem antecedentes criminais possuía.

Nesta sexta-feira, a prefeitura de Salvador decidiu decretar feriado na próxima quinta-feira, quando completa o sétimo dia do assassinato. Porém, a medida não é em reverência à memória de Carlos Alberto, não. Segundo o alcaide é apenas para “evitar transtornos” na Copa das Confederações.

Sim, claro. Os turistas não podem ser incomodados.

P.S Carlos Alberto era primo de Joel Conceição, uma criança de 10 anos, fissurada em capoeira, que também morava na rua Aurelino Silva. Assim como seu pai Mestre Ninha, seu tio Mestre Carlos e o Mestre Bimba, criador da Capoeira Regional, o guri tinha as manhas e mandingas. A capoeira é popular neste negro bairro do Nordeste de Amaralina porque sempre foi usada pelos negros para defender sua liberdade.
E, também, foi usada pelo governo do Estado para fazer filmes publicitários exaltando as glórias da Bahia. E Joel foi escolhido para esta tarefa. Porém, como bem descreveu sua mãe Miriam Conceição, “meu filho foi protagonista de uma Bahia vendendo alegria para os gringos, que a Bahia é berço de num sei o quê e de num sei o que mais, mas esta mesma Bahia, através de seu aparato policial, tirou a vida de meu filho”.
Joel Conceição foi assassinado em 21 de novembro de 2010, quando estava na janela de sua casa. Todos os nove policiais que participaram do assassinato estão soltos.

Franciel Cruz