Entretanto, as chances não são iguais.
Se pegarmos, por exemplo, o Joãozinho que está começando uma empresa de confecção com dois funcionários e comparamos com um empresário tipo o Eike Batista, que abre uma empresa de confecção, a gente vai perceber que as chances não são as mesmas. É a diferença que o capital, a quantidade de bens, faz na competição.
E daí, passa um tempo, o Eike vai muito bem e o Joãozinho quebra.
Porque isso aconteceu? Se as condições de trabalho para os dois são as mesmas? A resposta é óbvia: as chances não são as mesmas. Mas ninguém questiona isso.
A explicação de Joãozinho não ir pra frente é porque ele é incompetente ou por que os impostos são terríveis. Ou as duas coisas. Se Joãozinho for negro ou índio ou sem terra ou mulher (Mariazinha?), a coisa fica bem mais complicada pro lado dele (dela), acredite.
Mas, enfim, ninguém questiona as regras do jogo. Todos tomam elas como "naturais". É assim mesmo. É a "livre concorrência" e o mais forte devora o mais fraco. Outra máxima da meritocracia. Quem tiver competência (e for homem, branco, classe média), estabelece-se (ou não).
Fomenta-se a ideia da competição e de que os melhores prevalecerão. Dizem que é o sistema mais justo do mundo.
E os outros? O que acontece com eles?
Nunca entendi essa lógica de competição, sabe. Pra começar, as chances não são as mesmas pra todo mundo. Não é uma competição "justa". Mas não para por aí.
Pra mim, a melhor parte da meritocracia é essa: as pessoas não valorizam apenas os "bem-sucedidos", mas valorizam principalmente o "cidadão trabalhador", isto é, aquele que cumpre seu papel e aceita a ordem vigente sem questioná-la. É o bom moço, o rapaz trabalhador, que luta contra as dificuldades movido pela esperança que um dia vai crescer na vida.
Daí vem uma frase que eu acho ótima, dita pelo chefe ao seu novo colaborador: "a gente crescendo, você cresce junto". E é verdade. Mas só até certo ponto. A empresa sempre vai lucrar muito mais do que você em cima do SEU trabalho. Essa é outra coisa aceita como "natural", "é assim mesmo", "dê graças que você tem um emprego".
A verdade é que o trabalho é fundamental e através dele as pessoas se realizam socialmente. Mas, dentro da meritocracia, ele pode ser alienado do trabalhador e da trabalhadora. De repente, não somos mais donos dos frutos de nosso trabalho. Não somos trabalhadores, mas peças dentro de um sistema. Podemos ser substituídos a qualquer momento, por razões de capricho de mercado ou dos patrões.
Mas é assim mesmo.
Pessoas socadas dentro de ônibus, mergulhadas em trabalhos que não gostam, com poucas perspectivas de sair, de mudar. Pessoas oprimidas por um cotidiano e por um sistema que lhes diz que a culpa de toda essa infelicidade é delas mesmas, mas que "se você trabalhar bastante (pra mim) você vai prosperar". Se não prosperar, a culpa é sua, só sua.
Se você não tem casa própria, a culpa é sua. Se você não tem uma terra própria, a culpa é sua. Se você não pode pagar por atendimento médico, a culpa é sua. Se você não tem o que comer, a culpa é sua. Porque você provavelmente é um vagabundo. Ou vagabunda.
Meritocracia.
Mas é assim mesmo, né?
Enfim.
Seja um bom moço.
Seja uma boa moça.
Proteste contra a corrupção. Sem violência. Sem baderna. Volte pra casa.
E amanhã esteja de volta que o batente começa às oito e alguém tem que trabalhar nesse país.