Esta é a primeiríssima colaboração do Mashnotes com alguém de fora. Digam “olá” ao Rodrigo Nogueira.
Demos-lhe carta branca e ele escreveu-nos um bonito texto. Esperamos que gostem tanto como nós (muito).
E nas sábias palavras dos Beastie Boys: Hey Ladies!
Adoro o Bridesmaids do fundo do coração (tanto que me recuso, como acontece tantas vezes, a usar o título em português – A Melhor Despedida de Solteira – para me referir a ele). É bonito e hilariante, tem personagens óptimas, um elenco virtualmente perfeito, uma boa história e algumas das minhas pessoas cómicas favoritas de sempre ao barulho (quer seja atrás ou à frente das câmaras). É possível que já tivesse visto antes a Melissa McCarthy em sítios, mas nunca a tinha visto assim, por isso dou crédito ao filme por ma ter dado a conhecer.
Talvez eu estivesse, mesmo antes de o ver, há dois anos, predisposto a gostar do Bridesmaids porque, sem sequer entrar no facto de ter sido produzido pelo Judd Apatow (e há muitos maus filmes que o foram), foi realizado pelo Paul Feig, alguém que, por ter criado o Freaks and Geeks (mais uma vez o respeito: nunca me ouvirão a chamar-lhe A Nova Geração), a série que me fez interessar-me a sério por televisão, comédia no geral e sentir que, apesar de isso estar muito distante da realidade, eu ganhava qualquer coisa em ver toda a gente que estava envolvida nela a singrar na vida (a árvore genealógica de objectos que me dizem muito saída da malta da série assusta-me, do Superbad ao Enlightened, passando pelo Knocked Up e o The Muppets). Mas a verdade é que o Feig tem três filmes anteriores e nunca tive curiosidade de os ver – se bem que este pareça ser aquele em que ele teve mais responsabilidade criativa.
Mas a verdade é que gosto do filme, e mal posso esperar por Setembro, altura em que – mesmo sabendo que chegará cá com uma tradução ridícula, em que quase nada do que é dito terá correspondência com o texto das legendas –, se tudo correr bem, se estreia The Heat, o buddy cop movie que o Feig fez, escrito pela Katie Dippold (cujos créditos incluem Parks and Recreation, série que abandonou para trabalhar nisto) e protagonizado pela Sandra Bullock (e não, não tenho grande apreço por ela, mas tudo parece indicar que isso é um mal menor) e a Melissa McCarthy. Dois anos depois do Bridesmaids, o filme parece ter voltado a “provar” (como se isso fosse necessário) a estúdios que: 1) mulheres podem ter piada (é uma não-questão, óbvia para mim e qualquer pessoa com dois dedos de testa, mas que continua a ser infelizmente posta)*; 2) pessoas pagarão para ver mulheres a ter piada em ecrãs de cinema, porque ninguém vai morrer se isso acontecer. O problema é que é raro isto acontecer em moldes Hollywoodescos. Tanto antes do Bridesmaids quanto do The Heat, vários projectos de filmes foram rejeitados ou postos de molho pelos estúdios porque queriam ver se aquilo corria bem, só que, mesmo depois do sucesso, continuavam sem acontecer. É triste, quase tão triste quanto só haver espaço para homens (e, neste caso, um homem específico) realizar este filme.
Será estranho eu gostar destas coisas? Para começar, nunca fui madrinha de casamento de ninguém, nunca tive um negócio de cupcakes, nem sei o que é fazer parte de uma amizade entre mulheres, porque, lá está, sou um homem. Não devia sentir a minha masculinidade ameaçada por gostar de um filme de (apesar de ter sido realizado e produzido por homens, foi escrito pela Kristen Wiig, a protagonista, e a Annie Mumolo, parceira criativa dela) e para mulheres (e, já agora, não, não sinto, e isso não é um problema a sério)? Há quem pense assim, e especialmente em termos de quem manda no mundo (gente misógina até ao tutano, mais ou menos abertamente, mas que nunca foi confrontada na vida com a palavra “misoginia”), o que é mais do que um bocadinho de nada triste. São pessoas que acham que, por ver um episódio de Girls (mais Apatow!), vão tornar-se de repente mais femininas, como se isso fosse realmente acontecer e fosse um problema enorme**.
É capaz de ser por causa de gente desta, que só vê filmes ou séries (e aqui foco-me sobretudo no caso americano) se forem protagonizados por homens com miúdas “giras” e “boas” debaixo do braço e pouco mais, existem, além de poucas realizadoras, poucos filmes em geral em que duas mulheres falem uma com a outra sobre algo que não seja um homem. Haver cenas assim deve, à partida, mostrar mais ou menos que não são definidas enquanto pessoas só pela relação que têm com os homens (quando o contrário acontece em todos os filmes). O Bechdel Test (já que estou a falar de americanos, também me vou abster de traduzir para “teste Bechdel”) é um teste no qual os filmes só passam se tiverem cenas assim, em que mulheres falam umas com as outras nesses moldes. Foi mais ou menos proposto pela Alison Bechdel numa banda desenhada em 1985 (mas tem obviamente antecedentes) e algo que, se lhe dermos atenção, começará a deprimir-nos quase sempre que virmos um filme (são tantos os casos em que não se passa no teste que quase tenho vontade de pôr o punho no ar e dizer “fuck yeah!” quando isso acontece)***.
Não quero parecer um tipo a fazer mansplaining (um dos meus maiores medos ao escrever isto), muito menos achar que o Bechdel Test é definitivo ou prova realmente se um filme é misógino ou não, mas se calhar é preciso as pessoas terem noção das coisas. Não numa de tokenism, mas mais numa de ter consciência. Muitas vezes, em filmes, personagens que não têm grande especificidade de género ou sequer de etnia podem não ser homens brancos, não? As pessoas que o herói – também é preciso haver heroínas, gays, etc. a protagonizar filmes, mas é algo que fica para depois – encontra pelo caminho, que o ajudam a atingir os seus objectivos, podem ser de todo o tipo, não? Quando um filme como o Fast Six (de uma saga que se tem tornado cada vez melhor quanto mais diversidade tem abraçado no elenco que não pára de crescer), que deveria ser, à partida, ultra-machista, tem mais mulheres e minorias que são personagens fortes e badass do que muitos outras coisas que deveriam ter mais juízo, é um bocadinho de nada triste, não?
O Rob Delaney, um cómico que adoro, diz muitas vezes em entrevistas que, se alguém tem só piada para homens ou para brancos não tem realmente piada. É preciso ter piada em todo o lado. Por muito porcas que sejam algumas das coisas que ele diz, tenta sempre ser o mais inclusivo possível (ler o que ele escreve sobre o aborto, por exemplo, mostra como tem o coração no sítio mais certo que há), não rebaixar ninguém e não desrespeitar a essência de cada género. Faz-me sempre confusão que homens/mulheres se portem de maneira diferente quando estão só com homens/mulheres ou com os dois ao mesmo tempo. Infelizmente, é comum os filmes também entrarem por esse caminho. Talvez seja por isso que não se estranha que haja poucas mulheres nesse mundo: são feitos por e para homens, mas acabam por ser vistos por toda a gente. Só acho que seria fixe que também fossem feitos por, e para, toda a gente.
* Pensa nas pessoas com menos piada que alguma vez viste a ganhar a vida a fazer as pessoas rir. É provável que muitos deles fossem homens, não? Nenhuma pessoa sã diria que, porque um dia viu um homem a tentar ter piada e a falhar, nenhum homem tem piada, mas o contrário acontece: uma pessoa um dia vê uma mulher que não tem piada e acha que nenhuma mulher tem piada.
** Isto já para não falar de quem rejeita coisas como o Girls, e talvez qualquer coisa com a Melissa McCarthy, porque nem a Lena Dunham nem a McCarthy são “giras” ou “boas” – o que é altamente subjectivo e talvez o pior critério para se querer ver o que quer que seja na vida –, e de não se aceitar o facto de a Hannah Horvath, do Girls, ser uma pessoa menos do que perfeita, quando se vive na boa com homens cheios de falhas em ficção televisiva, há um diálogo do Adam sobre ela que ecoa sempre na minha cabeça: “I’m a difficult person. Everyone’s a difficult person. She was accepting of my brand of different. She was okay with it”. A Julie Klausner, que é das minhas pessoas favoritas no geral (seja nos livros, no podcast, ou nos vídeos) disse isto numa entrevista no final de 2010 (meses antes do Bridesmaids, um ano antes do Girls):
“What do you hope to see from ladies in comedy in the future?
New voices, character work that is inherently female in origin–meaning, comedy that comes from how women think and act, that doesn’t just come from the mind of a man who’s paid to write dialogue for a woman who can do a funny voice–and ideally, a greater diversity in shapes, sizes, race, etc. I want the funny best girl friend in comedy movies to be every bit as fucking fat as the leading man. And I want to see Jewish chicks fucking blonde guys in their movies, because why should Woody Allen and Judd Apatow have all the fun? WASPs and Irish Catholic guys are hot, and believe me, we are every bit as neurotic as our semitic male counterparts in this department.”
*** Dos filmes grandes deste Verão, há muito poucos que passem esse teste (o The Heat passa, o The Wolverine também, o Star Trek e o Pacific Rim e os outros todos não). Há um site que lista tudo (não é a coisa mais fiável do mundo: a memória falha às pessoas quando saem do cinema) e o Vulture, da New York, tem sido incansável a falar sobre isto tudo. Já agora, eu sei que alguns dos filmes mencionados ao longo deste texto também não passam. O caso na televisão, tanto em termos de gente atrás das câmaras quanto em termos bechdelianos, é bem mais animador (já acabaste de ver o Top of the Lake e o Orange is the New Black? Se ainda não, por que raio estás tu a ler notas de rodapé na internet?), mas mesmo assim não é ideal, continua a ser um problema.
O Rodrigo Nogueira tem uma barba e gosta de escrever e ter muitas opiniões sobre cinema, televisão e comédia.
Escreve regularmente aqui e apresenta um anti-talk-show online aqui ou aqui.