O francês Éric Vartzbed é um bravo. Doutor em psicologia e psicoterapia, ele escreveu um livro bem fundamentado e bacana de ler, e na hora de batizar a criança, tacou-lhe no título uma fórmula de auto-ajuda. Cara de ponto de interrogação: por que o Sr. Vartzbed fez isso? Que estranhos motivos o moveram? Falta de imaginação? Canalhice comercial? Ou mais uma brincadeira ambígua e irônica inspirada nos clichês que Woody Allen explora tão bem em seus filmes?
Não sei. Não encontrei muita informação sobre ele na internet (que não estivesse em francês). Mas o que eu sei é que esse espírito espírito meio zombeteiro é bem o que pega nesse “Como Woody Allen Pode Mudar Sua Vida”. Rápido, simpático e elegante, em vez de enveredar pela análise pragmática (e chata) da filmografia de Allen, o que o Vartzbed fez foi a crônica do seu encontro pessoal (incluso aí sua formação de terapeuta) com a obra do nosso querido cineasta novaiorquino. O resultado disso, diferente do que o título rapidamente sugere, não se aproxima nem um pouco do formulismo da auto-ajuda. Pelo contrário, quem procurar aqui receitas prontas pra ser feliz vai encontrar, confissões, costuras, mergulhos, encaixes e sobreposições entre psicanálise, psicologia, filosofia e um cinema muito peculiar. No fundo, o livro é um pouco como as boas comédias do Woody Allen: toca em feridas profundas, mas sabe ser leve, engraçado e fluído quando necessário. Tem ritmo, consistência e bom humor. Um equilíbro raro.
O ponto de partida de Vartzbed é já sair confessando desavergonhadamente seu posto de fã de Woody Allen e o impacto que seus filmes tiveram na sua formação pessoal. Nada de posturas distantes ou falsas imparcialidades. Pra ser mais específico, ele cita emocionado a comoção que sentiu ao assistir A Outra. Nesse filme de 1988, Gena Rowlands interpreta uma professora e ensaísta fria e esquemática que se refugia em um apartamento alugado para terminar de escrever uma tese. O plano, no entanto, se mostra defeituoso pois as sessões de psicanálise em uma sala vizinha vazam para dentro do refúgio por meio do encanamento do ar-condicionado. A voz invasora acaba desencadeando na personagem Marion Post uma corrente de lembranças e reflexões que abalam os fundamentos da sua vida atual.
Vartzbed conta que usou o filme como espelho para resolver questões particulares. E que essa foi apenas a primeira vez de muitas. Capítulo após capítulo, ele mostra como o trabalho de Woody Allen se presta como parceiro de reflexão (de quem está a fim, claro) por abordar feridas universais com a principal ferramenta do seres urbanos – a palavra. Afinal, por mais bem escolhidos que sejam os diretores de fotografia, por mais cativantes que sejam as trilhas sonoras, por mais cuidadosos que sejam os planos, o cinema de Allen é reconhecidamente um cinema da palavra.
Esse é um dos principais pontos de intersecção que Vartzbed encontra entre seu ídolo e o trabalho terapêutico, mais especificamente a psicanálise, também já apelidada de “a cura pela palavra”. Ele lembra que Allen “filma o fosso que separa as palavras do ser.” Seus personagens falam, falam, falam, falam o tempo todo, usando as palavras para mediar uma negociação complexa entre seus anseios, sua formação e o ambiente social que os rodeia, na maior parte das vezes, é bom lembrar, uma classe média urbana – e novaiorquina, o que significa urbana na décima potência. A palavra, para estes habitantes, é instrumento de trabalho, organizadora da vida cotidiana e força subterrânea da ebulição inconsciente. É também uma instância de distanciamento saudável de impulsos incontrolados, como em Vicky Cristina Barcelona onde “a passagem pela língua inglesa permite que o casal formado por Maria Elena e Juan Antonio manter à distância a emoção destrutiva. (…) Várias cenas mostram como o movimento de tradução é acompanhado de um desligamento no qual a raiva se aplaca.”
Mas a primazia da palavra é um aspecto claro em Woody Allen. O que nem sempre aparece, mas que ele já sublinhou em entrevistas, e que Vartzbed faz questão de lembrar, é a visão de mundo otimista, quase redentora, do diretor. Embora pintado como ranzinza, mau humorado, garoto enxaqueca, os filmes de Allen mostram em sua maioria caminhos de pacificação ou de encontro de personagens consigo mesmo. Ainda que em muitos casos esse encontro ou essa pacificação não ocorram (ou ao menos da forma convencional), mesmo as frustrações revelam uma crença na busca por algum tipo de conforto e entendimento de si e do mundo. No já citado A Outra, Marion Post aceita uma voz estrangeira vazada ao acaso como mensageira de desejos interiores. Sandy Bates, de Memórias, termina o filme aceitando que “não posso controlar tudo na vida, a não ser a arte e a masturbação, duas áreas nas quais sou um absoluto perito”. Em Igual a Tudo na Vida, a paranóia patológica de David Dobel acaba ajudando a melhorar a vida de um pupilo. Em Zelig, o protagonista se torna parecido de seus próximos querendo aceitação. Nenhum niilista verdadeiro se permitiria tamanho luxo, tanta energia empregada em tentar se aliar a um mundo de desespero.
Segue Vartzbed: “Até quando seu discurso é sério e desiludido, o tom é tão energizante, apimentado e irriquieto que o espectador deixa a sala assobiando, revigorado.” Sim, O Sonho de Cassandra e Match Point, por exemplo, são filmes pesados, opressivos. Mas é difícil sair do cinema sem algum entusiasmo com a descarga de energia promovida pelo passeio em tal montanha russa.
Mas e aí? Quase 50 anos e mais de 40 filmes depois, Woody Allen pode mudar a sua vida? Claro que não pode. O autor fecha o livro com um capítulo chamado justamente “Como acabar com os tratados sobre a felicidade e outros manuais éticos?” E evoca Freud: “A felicidade é uma questão de economia libidinal individual. Nenhum conselho nesse terreno é válido para todos, cada um deve procurar por conta própria o seu modo de ser feliz.” De qualquer forma, olhe a foto logo acima e veja se este homem não tem uma certa credibilidade para lhe dar alguns conselhos.